domingo, dezembro 06, 2009

FENOMENOLOGIA PARTE FINAL

Caráter Dialético da Fenomenologia

Segundo Strasser (Phénoménologie et sciences de l’homme, p. 257), haveria ainda duas outras características importantes a serem esclarecidas: a fenomenologia enquanto ela é uma hermenêutica e uma dialética.
A fenomenologia para Husserl é uma ciência dos fenômenos, mas não dos fenômenos considerados como os da ciência: A fenomenologia não será uma ciência dos fatos mas sim das essências. Os fenômenos que ela estuda não são os fenômenos reais do mundo, mas sim os fenômenos que sofreram as reduções transcendentais eque Husserl chamará de fenômenos irreais.
Tanto o mundo exterior quanto a realidade transcendental são reais (Wirklich). A realidade exterior, transcendente, é real no sentido natural (Real). A realidade transcendental é real no sentido primordial (Reell).
As essências são a resultante da redução eidética, e que serão atingidas pela intuição eidética numa singularidade eidética. A característica do intuicionismo nos fornece uma estrutura determinada do ser, que por sua vez será um ser determinado, um ente particular. A estrutura eidética que pertence a um gênero de ser, na verdade ela é uma estrutura determinada, fazendo, assim, com que fiquemos na limitação da intuição, na finitude que caracteriza a intuição. Por isso mesmo o pensamento do Ser, em geral, não pode se dar sob a forma de uma intuição. Com efeito, a consciência intuitiva se constitui pelas intenções significantes que foram preenchidas. Ficam fora da consciência intuitiva as outras intencional idades visadas mas não intuicionadas. Encontramos, portanto, no seio da própria análise da consciência os limites da consciência intuitiva, ou, em outros termos, que a consciência é intuitiva, e não-intuitiva, que o Cogito é Reflexão e Irreflexão, Consciente e Inconsciente.
Por outro lado, ainda, já havíamos feito observar que toda presença intuitiva se dá num horizonte.
Se analisarmos, agora, a estrutura desse horizonte, verifica mos que a cada região encontraremos um tipo de horizonte próprio, provido de uma estrutura eidética determinada. O horizonte, de certa forma, prefigura o trajeto que seguirá a intencionalidade da consciência se esta se quiser converter em consciência intuitiva. O que é tomado em consideração, portanto, é uma estrutura eidética determinada, a estrutura de um horizonte particular. O intuicionismo será incapaz de pensar a essência do horizonte enquanto tal. O horizonte é precisamente aquilo que escapa ao pensamento quando ele quer intuir a sua essência. O horizonte transcende toda determinação, e nos coloca diante da Consciência não-intuitiva. E é exatamente esta Consciência não-intuitiva, este horizonte que torna possível toda e qualquer presença. "O que permite a todo ser se manifestar, se tornar "fenômeno", é o meio de visibilidade no qual se dá a presença efetiva." Mas tudo isto só é possível porque há um horizonte transcendental de todo ser em geral, e que escapa à determinação da Consciência intuitiva. Surge a necessidade de que a fenomenologia desenvolva a sua segunda característica fundamental: o seu caráter dialético.
Será o pensamento dialético quem permitirá descobrir o ser-encoberto, o ser recoberto, quem fará o ser aparecer.
O pensamento dialético é exatamente aquele que permitirá ao homem ultrapassar as perspectivas unilaterais e os horizontes limitados. A consciência da finitude que nos dá o intuicionismo é ultrapassada, é negada por um movimento de transgressão desta finitude.
Este momento negativo nos impulsiona a um ato novo, criador, e que atestará o Ser. Pela fenomenologia da significação, Husserl nos indica que o Horizonte é a significação absurda, pois sem preenchimento possível. Entretanto eu posso visar o Horizonte sem tê-lo presente, sem tê-lo preenchido.
Esse pensamento dialético será uma das dimensões do Logos.
Logos, significou Palavra, Pensamento, Razão, Verbo, Linguagem, Diálogo, Dialética. Dialética vem do grego dia = lego = discutir, conversar. Dia - advérbio e proposição indicando a idéia de separação. Por extensão: discorrer, raciocinar, dialektikos, - que concerne à discussão, arte de discutir, arte de calcular as probabilidades na discussão. Na realidade, ele significou ao longo da história todos esses conceitos, e ele os conserva ainda hoje no seu seio. O Logos permite ver, pela luminosidade que projeta, a relação entre o Ser e o Devenir. O Ser é aparentado ao devenir pois o verbo no prefeito e no aoristo é conjugado, é empregado pelo verbo devenir.
A dialética nos permite ver esta ligação entre o Ser e o Devir, ela nos desvela o Ser em Devir, ela permite que o Ser escondido se manifeste, apareça.

A dialética enleva o Ser do seu esquecimento, da sua dissimulação; ela se faz apelação, palavra, interpelação; ela permite que entremos em acordo, que reconheçamos, que pensemos, que falemos, que nos comuniquemos.
Essa dialética se exerce, entre outras, por meio da palavra. A palavra é um signo que me remete ao designado. A relação entre o signo e o que ele significa para nós é uma relação intencional. A palavra é um signo verbal que realiza a tentativa de tornar presente algo que está ausente. Pela palavra eu transcendo a realidade concreta da situação, transformando o ser ausente em ser presente

Caráter Hermenêutico da Fenomenologia

A partir das Meditações Cartesianas, a fenomenologia, além de descrever os correlatos noéticos-noemáticos, passará a se constituir numa disciplina pela qual o sujeito é quem passa a ser doador de sentido, numa disciplina voltada para os problemas da constituição, isto é, os modos pelos quais meu corpo, a existência dos outros e do mundo aparecem em minha experiência.
Tratar-se-á de descrever a maneira concreta pela qual aparecerão essas transcendências; não se trata de suprimir os parênteses, nem de querer provar a existência do mundo.
A fenomenologia de Husserl nos conduz da experiência mundana à atividade do sujeito transcendental, assim como, nos mostra de que maneira esta atividade constitui em sua experiência o aparecer do mundo e dos outros.
Por outro lado, Husserl irá recusar o ideal cartesiano de um pensamento sem pressupostos, embora de modo apenas indicativo, sem maiores desenvolvimentos. Serão os filósofos que prosseguirão nesta direção, que se encarregarão de desenvolver este aspecto da fenomenologia na sua característica de hermenêutica.
Ela afirmará que o pensamento se encontra situado desde o início, é um pensamento engajado, encarnado. Há sempre algo pressuposto quando começo a filosofar; a minha própria existência; não uma existência abstrata, como falava Descartes, mas uma existência aqui e agora. Assim, por exemplo, eu penso enquanto filósofo que foi educado na cultura ocidental, enquanto filósofo que herdou do passado as contribuições de Platão, Aristóteles, S. Tomás de Aquino, Kant, Hegel, Husserl, Freud, Marx. Assim a filosofia, já na Grécia Antiga, chamava de Ermeneia (Hermenêutica) a esta tentativa de explicar e de interpretar esta minha existência, este pensamento situado.
A atitude hermenêutica não aceita que a reflexão se faça sem ser em situação, como se fosse possível uma Consciência a-histórica, a-cósmica.
A fenomenologia enquanto hermenêutica pretende interpretar esta existência, este pensamento situado. A existência é pré-dada à reflexão. A tarefa da reflexão será a de tentar colocar de modo claro as estrututras desta existência, assim como de captar a sua significação.

Foi Aristóteles, no Tratado do Organon, quem escreveu um livro intitulado Peri Hermeneias: sobre a Interpretação. Ele se preocupava com a significação do nome, do verbo, da proposição, da significação do discurso. Assim, já para Aristóteles, a significação completa aparecia na frase, no logos. Isto significava que dizer algo a respeito de algo era interpretar. O verbo era o instrumento da atribuição que ele interpreta, que ele significa.
Esse sentido restrito em Aristóteles foi alargado posteriormente. Passou-se a chamar de Hermenêutica a ciência das regras da exegese, isto é, da interpretação particular de um texto. O objeto material da interpretação passa a ser o documento particular proveniente de um autor determinado. Ela passa a ser análise literária, histórica e doutrinai do texto. Posteriormente, é o próprio conceito de texto que se ampliará, já que o texto pode ultrapassar a escrita na medida em que há outros tipos de leitura possíveis; assim, por exemplo, a natureza, um sonhp, são textos que podem ser lidos de alguma forma, e conseqüentemente passam a ser objetos da hermenêutica. Assim, para Spinoza a interpretação da natureza é o modelo perfeito da hermenêutica, pois é ela quem nos introduzirá no conhecimento da única Substância. A hermenêutica para ele será a fonte de todo e qualquer conhecimento, pois ela se exerce graças ao Conatus, isto é, ao esforço para ser, graças ao Conhecer, ou, em outros termos, pela análise da natureza eu realizo o verdadeiro conhecimento do que eu sou.
O que interessa na interpretação é a dimensão da significação e do valor do texto. Ela se faz em níveis complementares:
a) inicialmente se exerce a epoché onde o juízo pessoal é suspenso para se submeter ao texto, para acolher o objeto material fornecido pelo texto;
b) em seguida se eleva à síntese em direção da significação e do valor do texto. Aqui intervém o julgamento pessoal. Por isto compreender um texto não significa reproduzir o que pensava o autor, ou fazer um inventário histórico do pensamento passado; compreender envolve um apreender atual que se faz na historicidade de nossa existência.

Há dois estilos de Hermenêutica segundo P. Ricoeur.

1) A interpretação será manifestação e a restauração de um sentido que nos é dirigido sob a forma de uma mensagem.
A interpretação seria, então, a inteligência do duplo significado :
a) um que é dado, manifesto; e b) outro que é escondido, latente.
A interpretação se refere, assim, a uma estrutura intencional a partir da qual o primeiro sentido já é dado através dos sinais que nos mostram o seu sentido primário, manifesto, latente. O papel do hermeneuta consistiria em restaurar o sentido latente que é dirigido sob a forma de mensagem.
2) A hermenêutica será compreendida com uma desmistificação, como uma redução de ilusões. Ela será uma interpretação redutora e destruidora. A destruição seria o momento necessário para se dar a nova fundação, na qual eu interpreto, decifro as expressões. Teríamos, assim, uma ciência mediata do sentido, uma visão do problema epistemológico numa perspectiva nova, pois ele deveria retirar as ilusões, as alienações, ele se definirá por uma tática de ação, tendo por base a suspeição, a luta contra os mascaramentos.
Jean-Pierre Osier, no seu prefácio ao livro de Feuerbach, A Essência do Cristianismo, reformula um pouco estas duas orientações gerais da Hermenêutica que acabamos de descrever.
Segundo este autor, a filosofia pode beneficiar-se da leitura religiosa, e em especial deste livro de Feuerbach, porque para ele a filosofia moderna se caracteriza por ser uma via em busca de sentido, uma via que define o conhecer como um re-conhecimento do sentido, um re-conhecimento do livro da natureza, da história. Esta leitura terá como propedêutica a interpretação, o decifra-mento. Ora, nos dirá Osier, a "Essência do Cristianismo" constitui um centro visível ou escondido da filosofia moderna, na medida em que ele é a promoção do religioso como prolegomeno à toda leitura do profano que queria se apresentar como ciência" (Feuerbach, Ludwig: L’essence du christianisme, Paris, F. Maspero, 1968, p. 10).
Na Essência do Cristianismo, o problema do religioso é colocado em termos de interpretação, de sentido, supondo, assim, algo lizível. A religião é um livro que tem vários sentidos, várias leituras.
Ele irá contrapor a essa leitura do religioso uma outra: a de Spinoza no seu tratado Teológico-Político.
Para Spinoza é necessário que partamos de uma teoria da Leitura para que possamos realizar toda e qualquer leitura. Para ler nós devemos nos deslocar dos dados imediatos ofertados à leitura. Esse deslocamento não nos irá levar a descobrir um sentido latente existente por detrás de um sentido manifesto. Esse deslocamento me introduz num novo nível, num grau superior do conhecimento, procedendo por meio do raciocínio dedutivo, por definições, por explicações causais.
A religião assim deslocada do seu nível imediato, do seu nível de significação e de interpretação, será considerada como um EFEITO. Para compreendê-la eu devo produzir as definições científicas que permitirão dizer suas CAUSAS racionais.
"Essas causas racionais da religião estão no fato de que a conduta racional não é sempre universal; por isto surgirá um Discurso Imperativo que se dirige à imaginação dos homens, mostrando a religião como um meio de nos dar regras morais e políticas que nos conduzirão à virtude. Assim, a leitura da Bíblia nos permite reconhecer o efeito imaginário de uma causa que age metonimicamente: tal é a interpretação científica do religioso" (Ibid. P. 10).
Para Spinoza, o texto é um efeito e conseqüentemente o seu sentido também. Conhecer aquilo que se lê significa Produzir o Conceito Teórico que nos permite ver os mecanismos de produção do texto, do sentido, da própria hermenêutica.
Esses mecanismos da produção nos falam de uma Causa que age por metonímia. Tecnicamente, metonímia é a figura que sublinha a conexão de um significante a outro significante; ela estabelece uma ponte entre vários significantes, permitindo que se dê o deslocamento de um nível para outro graças à combinação de um termo com outro termo que se desliza, se desloca, dentro de um processo articulado de relação de causa e efeito.
A partir da interpretação Lacaniana, Freud e Marx se situam nesta linha de Spinoza e não na de Feuerbach. Para Lacan,, a interpretação não é "uma hermenêutica que descobrirá por trás do texto manifesto uma narração latente, sustentada "na imanência do sentido" . Para ler um sonho é preciso produzir sua leitura, e não reduzir o manifesto ao latente, ao secundário, ao primitivo" (Lacan, Jacques: Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 18).
A Epistemologia aqui se define em termos de Processo e Produção e não em termos de Compreensão de um texto que possui um sentido.
Nas ciências empíricas a interpretação se encontra sob duas formas:
a) interpretação antecipadora ou hipótese: ela antecipa sobre os resultados da pesquisa, da experiência. A hipótese é o resultado da interpretação de uma problemática inicialmente pré-científica.
b) interpretação hermenêutica para as ciências históricas, a psicologia e a sociologia. Ela depende da situação, que será descrita ou sobre a qual formularemos hipóteses.
Ambas devem ser verificadas a posteriori por métodos empíricos.
Vemos assim que a prática científica é antecedida por uma fase pré-científica que interessa à fenomenologia. Esta irá descrever e interpretar a existência humana, embora não vise se perder nas suas vivências, mas sim encontrar a sua estrutura universal dessas experiências. Por elas a existência se manifesta como consciente, livre, corporal, histórica e através delas são colocadas as questões relativas ao sentido do mundo e ao sentido do estar-no-mundo para o homem.

 Por Creusa Capalbo

terça-feira, dezembro 01, 2009

FENOMENOLOGIA PARTE II

Caráter Intuitivo da Fenomenologia


Husserl fala da Intuição doadora de sentido, de uma Visão que constitui seus objetos.
Uma palavra não tem materialmente sentido: ela é uma realidade sensível como o mundo físico. Uma palavra torna-se sinal, portadora de sentido, graças à consciência que é mais do que perceptiva, ela é capaz de realizar atos significativos.
O ideal do conhecimento para Husserl será realizado por uma apreensão das coisas nelas mesmas, por uma consciência capaz de preencher integralmente todas as potencialidades significativas das coisas. Este ideal porém é uma idéia no sentido kantiano, isto é, nós não podemos nunca alcançar essa plenitude.
A nossa significação segunda Husserl é preenchida de dois modos: i) pela imaginação: ela nos dá a coisa numa imagem; e ii) pela percepção: sensível - (matéria) categorial - (forma)
A Fenomenologia não aceita que possamos distinguir, nos objetos ideais, o lógico e o real. Os objetos ideais não são nem puramente lógicos, nem reais, nem uma síntese dos dois.
A fenomenologia afirma que toda consciência é intencional e que nenhum objeto é pensável sem referência a um ato da consciência que consegue alcançá-lo. A evidência do conhecimento consiste no fato da presença do objeto na consciência. Mas nenhuma evidência é adequada, isto é, nem na percepção nem no juízo, a coisa seda totalmente, adequadamente.
A evidência e a percepção possuem um horizonte (de passado e de futuro), elas se desenvolvem no tempo, elas estão situadas. Assim o pensamento está em situação, ele está inserido numa linguagem. Conforme seja a nossa inserção no mundo, assim nossas evidências serão diferentes; já que há pluralidade de perspectivas do mundo, haverá também uma pluralidade de verdades.
Aqui estamos mais próximos de Heidegger e M. Ponty que de Husserl. Para este todo pensamento visa a coisa e só se exerce na presença do mundo, por isto a verdade como adequação será a do conhecimento à coisa. Entretanto se para o pensamento clássico, essa definição se obtém, graças ao primado do juízo, para Husserl, ele acrescentará que tal juízo só se concebe quando enraizado, fundado numa experiência ante-predicativa. Essa experiência ante-predicativa transcende a distinção do sensível intelectual. O que Husserl quer, para evitar o psicologismo da época, é distinguir o juízo como ATO de afirmação, do juízo com CONTEÚDO RELACIONAL visado.
Husserl distingue pensamento e conhecimento. O conhecimento é explicado como preenchimento (Erfühlung) da intenção. A intenção é dita significativa quando significamos intencionalmente o objeto, sem levar em conta a sua presença.
Quando esta intenção é preenchida pela presença do objeto nós temos uma intuição. Podemos assim definir a intuição como o preenchimento de uma intenção.
A consciência dessa intuição é chamada de evidência e ela pode ser de três modos. A cada um dos modos da evidência teremos, conseqüentemente em correspondência, um tipo de intuição. A evidência é uma experiência que se reveste de diferentes modalidades em conformidade com o caráter do objeto experimentado.
O objeto intuído e experimentado pode ser REAL e IMAGINADO ou RECORDADO. O objeto real apresenta-se em pessoa, na sua mesma corporeídade, em si mesmo ou imediatamente: PRE-SENTAÇÃO. A intuição tem então um caráter peculiarmente fundamental, e por isso é chamado intuição originária ou percepção. O objeto imaginário ou recordado não é apresentado de uma forma plenamente originária. Não temos portanto uma presentação, mas, uma presença de caráter inferior: REPRESENTAÇÃO ou APRESENTAÇÃO. Trata-se de uma posse indireta do objeto apreendido através de outro dado imediato que de alguma maneira o sugere ou apresenta.
No objeto podemos, também, distinguir três espécies diversas: OBJETO SENSÍVEL, CATEGORIAL e UNIVERSAL.
a) OBJETO SENSÍVEL: trata-se duma percepção; o objeto é apreendido na sua singularidade empírica, de um modo simples, sem necessidade de qualquer fundamento. Teremos a intuição sensível.
b) INTUIÇÃO CATEGORIAL OU AFIRMAÇÃO: refere-se a formas ou OBJETOS CATEGORIAIS. O termo não é derivado das categorias de Kant. Baseia-se no sentido do verbo grego AFIRMAR, EXPRIMIR. Na afirmação: "este prado está florido", o "prado", as "flores", são objetos sensíveis; mas o fato do prado estar florido, que é precisamente o que se afirma, é um objeto categorial.
Por certa extensão é denominado categorial qualquer objeto supra-sensível ou ideal, isto é, não apreensível pelos sentidos, ou mesmo o aspecto metempírico do objeto sensível. Podemos pois falar de intuição categorial sempre que se dá uma percepção supra-sensível, à qual se pode também insinuar mesmo em percepções de caráter fundamentalmente sensível.
Pela intuição categorial, Husserl supera o empirismo, que restringe a intuição aos objetos sensíveis. As coisas, a realidade, não se podem confundir com as coisas da natureza: "A última fonte de direito de todas as afirmações racionais é o ver imediato, não apenas o ver sensível ou experimental mas o ver em geral como consciência doadora originária em qualquer das suas formas"; e
c) OBJETOS UNIVERSAIS - (= ESSÊNCIA, ou EIDOS): são conceitos universais ou formas capazes de se verificarem invariavelmente em diferentes indivíduos.
É relativamente a estes objetos que se dá, no seu sentido próprio, a intuição eidética ou ideação.
Husserl chamará de NOEMA a descrição das diversas maneiras como o objeto se mostra quando é intencionado e chamará NOESIS a cada ato da consciência. Assim, a cada noesis corresponde um noema correlativo. Exemplo: à noesis ato de imaginar (imaginação) teremos o correlato noemático imaginário (Ibid., pp. 315-316; 370-375).
Essa preocupação com a descrição dos correlatos noético-noemáticos predomina em Husserl até as Meditações Cartesianas. Daí em diante a fenomenologia passa a ser desenvolvida com uma disciplina pela qual o sujeito é quem passa a ser doador de sentido.
Mas Husserl sabe que um conhecimento para ser objetivo tem de ser inter-subjetivo e por isto, como esse sujeito doador de sentido, para não cair no solipsismo, pode se comunicar, ser compreendido e apreendido pelo outro? Husserl terá, assim, de tratar do "outro eu" e da constituição dos objetos para uma pluralidade de sujeitos. Ele vai apelar para o conceito de sentimento interior ou intropatia (Einfühlung). Esse termo era usado pelos contemporâneos de Husserl para falar do problema da percepção dos outros por intermédio dos corpos. Isso significa que o meu EU pode ser dado como interioridade e como exterioridade e isso se dá de uma forma imediata, e não por um pensamento mediatizado. Esse sentimento interior permite que se constituam outros eus idênticos ao meu eu, na consciência transcendental.
Por esta consciência transcendental é que Husserl queria assegurar á filosofia um caráter de evidência absoluta. Podemos dizer, assim, que do ponto de vista metodológico a fenomenologia se propôs, inicialmente, ser um método de evidência ou uma filosofia primeira.
Será posteriormente que a fenomenologia se proporá como método descritivo, como "uma disciplina puramente descritiva, que explora, pela intuição pura, o campo da consciência transcendental mente pura" (Ibid., p. 141).
A seguir com Heidegger, M. Ponty, E. Fink, Sartre, a escola de Louvain, P. Ricoeur, não haverá mais a preocupação em passar do sujeito empírico para o sujeito transcendental. A descrição se aplica â explicação da existência humana situada no seu aqui e agora. O que se trata, então, é de descrever de que maneira concreta e original o meu corpo pertence à minha experiência, a existência dos outros e do mundo aparecem e pertencem à minha experiência.
Segundo Desanti (Desanti, jean T.: Phénoménologie et práxis. Ed. Sociales, 1963, pp 60-65) essa tendência da fenomenologia, oriunda do pensamento da "Krisis" de Husserl, renova, num certo sentido, o projeto de Hegel. "Ela quer colocar em evidência o movimento de auto-educação da consciência, quer nos indicar o campo histórico onde esta consciência acede a si mesma, na variedade de seus conteúdos e unidades dos momentos, o único que pode lhe permitir ser reconhecida como o raiz da experiência e a aprendizagem da razão."
O caráter intuitivo da fenomenologia, culminando numa filosofia da linguagem que busca uma coincidência da expressão com o dado intuitivo, é uma das características principais da fenomenologia mas não a exclusiva.

Por Creusa Capalbo

sexta-feira, novembro 27, 2009

FENOMENOLOGIA PARTE I



FENOMENOLOGIA COMO MÉTODO E COMO FILOSOFIA
A Noção de Filosofia Primeira
O problema diante do qual se colocou Husserl, desde as suas primeiras obras, foi o seguinte: o que resta quando eu realizo a dúvida universal no sentido Cartesiano?
Para Descartes nós sabemos qual é a resposta: é o EGO COGITO, o EU pensante.
Para Husserl o que permanece no íntimo deste COGITO são as ATIVIDADES do EU pensante. Essa vida do EU pensante se traduz em ATOS constituindo as coisas e os outros.
Essa compreensão do Cogito contrariava a ciência da época que afirmava que todo pensamento era resultado da ação de condições psicológicas ou de ações externas que agiam sobre mim. O pensamento era compreendido como fenômeno residual.
Para o psicologismo em voga na época de Husserl, os princípios lógicos, e em conseqüência a matemática, encontravam seus fundamentos nas leis psicológicas. Daí se justificar que as primeiras preocupações de Husserl serão relativas aos fundamentos da matemática e da lógica, buscando encontrar certezas fundadas sobre a evidência.
Em seguida, conforme nos indica Strasser (Strasser, Stephan: Phénoménologie et sciences de l’homme, Louvain, Nauwlaerts, 1967), ele edifica a fenomenologia mostrando como ela é um método e como ela deve ser uma filosofia primeira ou metafísica, é a fase das reduções e o acesso às evidências puras.
Na terceira fase, ele se esforça por mostrar como se vai da fenomenologia ao idealismo transcendental. Os seus estudos marcantes desta época são as Meditações Cartesianas, onde na 5a meditação já é colocado o problema do OUTRO, que será retomado por Max Scheler e Sartre posteriormente.
No pensamento dos últimos anos de sua vida, expresso nas "Krisis", Husserl constata que tanto a filosofia quanto a ciência estão em constante modificação, dado o caráter situacional do homem. Daí advém suas preocupações com a filosofia da história, das relações com o corpo, etc.
Husserl tentará, portanto, de um lado mostrar que a reflexão é reveladora das influências do meio, que todo pensamento está mergulhado na experiência vivencial, no fluxo temporal; será assim, um pensamento vivencial, no fluxo temporal, será assim, um pensamento e uma consciência históricos. Por outro lado, Husserl quer mostrar o valor e a importância de colocar entre parênteses esse vivencial, esse conjunto de afirmações que estão implicados na nossa experiência existencial, para ver melhor, não as realidades experimentadas mas sim o caráter de serem experimentadas. Em outras palavras, Husserl quer liberar o nosso olhar para a análise do vivido, que não pode ser definido, mas apenas descrito.
Husserl não colocará em dúvida, como Descartes, a realidade do mundo exterior. Ele realizará a "Epoché" fenomenológica que consiste em proibir todo juízo que verse sobre a existência espaço-temporal (Husserl, Edmund: Idées directrices pour une phénoménologie, Paris, Gallimard, 1950, pp. 102-103).
A redução colocará entre parênteses a realidade do mundo, bem como os conhecimentos científicos que deles possamos ter; colocará entre parênteses, ainda, o homem enquanto ser natural, o seu empírico, a lógica, e a matemática. Desta forma a redução nos prepara para a descrição dos atos mediantes os quais eu percebo, imagino e julgo os objetos. Pela redução nós vamos da experiência do mundo às descrições das atividades do sujeito transcendental.
A análise fenomenológica será, portanto, a análise dessas direções do nosso olhar feita pela consciência. Esta consciência é dita intencional porque se dirige, visa um objeto.
A intencionalidade é a direção da consciência para alguma coisa. Tudo isto para o que a consciência se dirige é objeto. Nós podemos, assim, erguer uma teoria da objetividade do real nos quadros do pensamento fenomenológico.
A direção para algo pode nos levar a pensar que o algo, o objeto, permanece numericamente idêntico, mas pode ter aparições múltiplas à consciência.
Neste olhar o que nós retemos é aquilo que nos aparece (o fenômeno); este olhar nos fornece uma impressão vivida, que pode ser descrita, que não pode se separar do meu corpo e da minha consciência que a experimenta.
Nós dissemos acima que Husserl define a fenomenologia como uma visão que se volta para o seu ato de ver, de experimentar. O ver ou "intuição doadora de sentido" é um ver que constitui seus objetos, isto é, ele insiste sobre este caráter da intervenção da consciência em toda atividade consciente, este caráter segundo o qual há uma estreita correlação entre nossas operações mentais e seus objetos, entre a noesis e seus noemas. A fenomenologia se distingue do realismo, do ponto de vista epistemológico, no que concerne ao conhecimento conceituai e não no que diz respeito ao conhecimento sensível. Ela recusa, no conhecimento categorial, a possibilidade de discernir, nos objetos ideiais, nos conceitos, o lógico e o real; o conceito não é objeto puramente lógico, nem puramente real, nem síntese dos dois. Para Husserl não se pode pensar um objeto sem nos referirmos ao ato de consciência que o atinge, que o apreende. A consciência não assimila o objeto, não o constrói. A consciência, pelo fato de se dirigir para o objeto (in-tensão), supõe que ela se distancia dos objetos. Toma recuo em relação a seus objetos, não se une a eles, mas apenas os visa. Por isto ele dirá que o conhecimento é uma série sem fim de relações intencionais, de um voltar-se constante para as visões que ela terá dos objetos. Estas visões não são todas da mesma forma. Husserl assinala três maneiras de realizarmos a redução, isto é, uma modificação de perspectiva.
a) redução eidética - nela eu distingo fatos e essências. A essência é a significação do fato e só se revela em situação, isto é, não se revela independentemente do fato.
b) redução transcendental - nela o mundo é visto como correlato da consciência. Não há o em-si; ela se situa no nível da intencional idade noética (operação consciente) noemático (objeto significativo).
c) redução constituinte ou produtiva - nela o ego se reconhece como fonte dos fenômenos, como responsável do seu sentido, como LIBERDADE.

Por Creusa Capalbo

quinta-feira, novembro 26, 2009

Fatalismo



doutrina ou atitude que considera todos os acontecimentos como irrevogavelmente determinados por antecipação. — O fatalismo é uma atitude religiosa que concerne aos acontecimentos da vida humana. Distingue-se do "determinismo", que se focaliza nas ocorrências da natureza e que é um princípio científico; enquanto o determinismo científico se opõe ao "indeterminismo" (indeterminação dos fenômenos da natureza), o fatalismo se opõe à liberdade humana: segundo ele, a existência é determinada anteriormente, de acordo com uma certa lei, por um destino inelutável. A maioria das doutrinas da Antiguidade grega reconhece que uma igual necessidade (anagke) dirige a vida dos homens e dos deuses: essa fatalidade toda-poderosa está presente na tragédia grega, onde o trágico é marcado precisamente pela impotência das vontades humanas em relação ao destino (por ex.: Édipo rei, de Sófocles); encontramo-la no fundo da filosofia estóica. Todas as teorias cristãs da "predestinação" sacrificam a liberdade à Providência. Fatalismo ou liberdade? Digamos que o destino é um objeto de crença e o fatalismo uma atitude sentimental, uma simples hipótese, enquanto que a liberdade é um dado da consciência, presente na experiência do ato voluntário, confirmado pelo da ação eficaz, quando nossa liberdade realiza alguma coisa que, sem a sua iniciativa, não teria existido. Não é por acaso que, na filosofia escolástica, o fatalismo era tido como um "argumento preguiçoso". [Larousse]

Contrariamente à opinião corrente, há vários tipos de fatalismo.

Leibniz propôs uma classificação que, embora incompleta, se tornou clássica. Segundo Leibniz, existem três ideias de fatalismo: há um fatalismo maometano, outro estoico e outro cristão. De acordo com o primeiro, o efeito verifica-se ainda que se evite a causa, com se houvesse necessidade absoluta. O segundo ordena ao homem que aceite o destino porque é impossível resistir ao curso dos acontecimentos. Quanto ao terceiro, afirma que há um certo destino de cada coisa regulado pela presciência e a providência de Deus. Leibniz manifesta que este último fatalismo não é o mesmo que os dois anteriores e que, embora se pareça com o fatalismo estoico, se distingue deste porquanto o cristão, diferentemente do estoico, não só possui paciência perante o destino como também, além disso, se sente contente como que foi estabelecido por Deus. [Ferrater]

filoinfo

quinta-feira, novembro 19, 2009

Existencialismo


O Existencialismo difundiu-se como o pensamento mais radical a respeito do homem na época contemporânea. Surgiu em meados do século XIX com o pensador dinamarquês Kierkegaard e alcançou seu apogeu após a Segunda Grande Guerra, nos anos cinqüenta e sessenta, com Heidegger e Jean-Paul Sartre.
A corrente existencialista assimilou ainda uma influência da fenomenologia cuja figura principal, Husserl, já citado, propõe a descrição dos fenômenos tais como eles parecem ser, sem nenhum pressuposto de como eles sejam na verdade. Para o existencialismo, a fenomenologia de Husserl significou um interesse novo no fenômeno da consciência.
Reunindo as sínteses do pensamento de cada um desses filósofos podemos listar os postulados principais dessa corrente filosófica que são:
1. A primeira é o ser humano enquanto indivíduo, e não com as teorias gerais sobre o homem. Há uma preocupação com o sentido ou o objetivo das vidas humanas, mais que com verdades científicas ou metafísicas sobre o universo. Assim, a experiência interior ou subjetiva - e aí está a influência da fenomenologia - é considerada mais importante do que a verdade "objetiva", um fundamento igual à da filosofia oriental.
2. O homem não foi planejado por alguém para uma finalidade, como os objetos que o próprio homem cria, mediante um projeto. O homem se faz em sua própria existência.
3. O mundo, como nós o conhecemos, é irracional e absurdo, ou pelo menos está além de nossa total compreensão; nenhuma explicação final pode ser dada para o fato de ele ser da maneira que é;
4. A falta de sentido, a liberdade conseqüente da indeterminação, a ameaça permanente de sofrimento, da origem à ansiedade, à descrença em si mesmo e ao desespero; há uma ênfase na liberdade dos indivíduos como a sua propriedade humana distintiva mais importante, da qual não pode fugir
Kierkegaard. O dinamarquês Soren Aabye Kierkegaard (1813-1855), encontra sua posição filosófica ao insurgir-se contra posições aristotélicas remanescentes na filosofia, o que faz opondo-se à filosofia de Hegel (1770 - 1831). Kierkegaard não só rejeitou o determinismo lógico de Hegel (tudo está logicamente predeterminado para acontecer) como sustentou a importância suprema do indivíduo e das suas escolhas lógicas ou ilógicas.
Kierkegaard contribuiu com a idéia original do existencialismo de que não existe qualquer predeterminação com respeito ao homem, e que esta indeterminação e liberdade levam o homem a uma permanente angústia.
Segundo Kierkegaard, o homem tem diante de si várias opções possíveis, é inteiramente livre, não se conforma a um predeterminismo lógico, ao qual, segundo Hegel, estão submetidos todos os fatos e também as ações humanas. A verdade não é encontrada através do raciocínio lógico, mas segundo a paixão que é colocada na afirmação e sustentação dos fatos: a verdade é subjetividade. A conseqüência de ser a verdade subjetiva é que a liberdade torna-se ilimitada. Consequentemente não se pode, também, fazer qualquer afirmativa sobre o homem. O pensamento fundamental de Kierkegaard, e que veio a se constituir em linha mestra do Existencialismo, é este: inexiste um projeto básico, para o homem verdadeiro, uma essência definidora do homem porque cada um se define a si mesmo e assim é uma verdade para si. Daí o moto conhecido que sintetiza o pensamento existencialista: "no homem, a existência precede a essência"
No caminho da vida há várias direções, vários tipos de vida a escolher, dentro de três escolhas fundamentais: o modo de vida estético, do indivíduo que não busca senão gozar a vida em cada momento; o modo ético, do indivíduo que é maquinalmente correto com a família e devotado ao trabalho, e o modo religioso dentro de uma consciência de fé.
A liberdade, segundo ele, gera no homem a angústia que pode levá-lo, de várias formas, ao desespero Então, cada decisão é um risco, o que deixa a pessoa mergulhada na incerteza, pressionada por uma decisão que se torna angustiante. Como no modo de vida estético, ele escolhe fugir dessa angústia e do desespero através do prazer e de buscar a inconsciência de quem ele é. Outra forma de fuga é ignorar o próprio eu, tornar-se um autômato, apegar-se a um papel, como no modo de vida ético.
Heidegger. O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) declarou-se um investigador da natureza do Ser. Heidegger contribuiu com seu pensamento sobre o ser e a existência, de onde o nome dado à corrente filosófica de "Existencialismo".
A angustia tem, no pensamento de Heidegger, origem diversa da liberdade. Para ele a angústia resulta da falta da precariedade da base da existência humana. A "existência" do homem é algo temporário, paira entre o seu nascimento e a morte que ele não pode evitar. Sua vida está entre o passado (em suas experiências) e o futuro, sobre o qual ele não tem controle, e onde seu projeto será sempre incompleto diante da morte inevitável.
Como uma filosofia do tempo, o existencialismo exorta o homem a existir inteiramente "aqui" e "agora", para aceitar sua intensa "realidade humana" do momento presente. O passado representa arquivos de experiências a serem usadas no serviço do presente, e o futuro não é outra coisa que visões e ilusões para dar ao nosso presente direção e propósito..
Portanto, no homem, o ser está relacionado ao tempo e está dado, - existe -, em três fenômenos, três "existenciais" que caracterizam como as coisas do passado, do presente e do futuro se manifestem para o homem e a unidade desses três fenômenos constitui a estrutura temporal que faz a existência inteligível, compreensível. São a afetividade, com que se liga ao passado pelo seu julgamento; a fala, com que se liga ao presente, e o entendimento, que é a inteligência com que lida com o seu futuro, com a angústia de sua predestinação à morte. Não podemos nos submeter a condicionamentos de nosso passado; não podemos permitir que sentimentos, memórias, ou hábitos se imponham sobre nosso presente e determinem seu conteúdo e qualidade. Nós também não podemos permitir que a ansiedade sobre os eventos futuros ocupem nosso presente, tirem sua espontaneidade e intensidade. Não podemos permitir que nosso "aqui e agora" seja liquidado
Na angústia, o homem experimenta a finitude da sua existência humana. Todas as coisas supérfluas em que estava mergulhado se afastam deixando-o a nú, como uma liberdade para encontrar-se com sua própria morte (das Freisein für den Tod), um "estar preparado para" e um contínuo "estar relacionado com" sua própria morte (Sein zum Tode). Essa visão existencial do homem, em que ele se conscientiza das estruturas existenciais a que está condicionado e que o tira da superficialidade em que desenvolve seus conflitos tornou-se sedutora para a psiquiatria.
A angústia funciona para revelar o ser autêntico, e a liberdade (Frei-sein) enseja o homem a escolher a si mesmo e governar a si mesmo.
Sartre. Heidegger e Sartre foram os dois mais importantes filósofos da corrente existencialista. Ambos foram profundamente influenciados pela filosofia de Edmund Husserl, a fenomenologia, e desenvolveram um método fenomenológico como base de suas respectivas posições filosóficas. Sartre contribuiu com mais pensamentos sobre a liberdade e chefiou dentro do movimento uma corrente ateísta.
Para Jean-Paul Sartre (1905-1980), a idéia central de todo pensamento existencialista é que a existência precede a essência. Não existe nenhum Deus que tenha planejado o homem e portanto não existe nenhuma natureza humana fixa a que o homem deva respeitar. O homem está totalmente livre é o único responsável pelo que faz de si mesmo. E são para ele, assim como havia colocado Kierkegaard, esta liberdade e responsabilidade é a fonte da angústia,
Sartre leva o indeterminismo às suas mais radicais conseqüências. Porque não há nenhum Deus e portanto nenhum plano divino que determina o que deve acontecer, não há nenhum determinismo. O homem é livre. Não pode desculpar sua ação dizendo que está forçado por circunstâncias ou movido pela paixão ou determinado de alguma maneira a fazer o que ele faz.
O pensamento de Sartre, contido em seus romances e peças de teatro e em escritos filosóficos influenciou fortemente os intelectuais franceses, entre eles Gabriel Marcel, que desenvolveu sua filosofia no âmbito do catolicismo romano, tornando-se um expoente do existencialismo cristão.
Gabriel Marcel. Apesar do precursor do existencialismo, Soren Kierkegaard, ser profundamente cristão, os principais filósofos que o desenvolveram e divulgaram, Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre, eram ateus, com uma filosofia materialista, bastante pessimista e atéia. Surgiu porém uma corrente existencialista cristã, sendo o principal filósofo dessa corrente o filósofo Gabriel Marcel.
A psicanálise e a terapia existencial. Ao definir causas de estados mentais como a angústia e o desespero, Kierkegaard criou um elo com a psicologia Este elo prevaleceria e se fortificaria no futuro, com as posições de Sartre e sua crítica à psicanálise, com as posições de Gabriel Marcel e finalmente com a adesão a essas duas linhas, respectivamente, de psiquiatras ateus e psiquiatras cristãos. A partir das idéias filosóficas existenciais, psicoterapeutas como Ronald David Laing, na corrente materialista de Sartre, e Viktor Emil Frankl, na corrente religiosa de Gabriel Marcel, propuseram práticas psicoterápicas originais.


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quarta-feira, novembro 18, 2009

Estruturalismo


                                                                 Claude Lévi-Strauss

A abordagem estruturalista dos fenômenos se baseia em duas relações principais de oposição: a primeira delas se dá entre o histórico e o atemporal; a outra, entre o voluntário e o contingente.
Corrente de pensamento que se caracteriza pela oposição à compartimentação do conhecimento em capítulos heterogêneos, o estruturalismo surgiu no começo do século XX e foi incorporado ao método de diversas disciplinas humanísticas, como a lingüística, crítica literária, antropologia, psicologia e teoria dos sistemas. O antropólogo funcionalista Bronislaw Malinowski expressou com clareza a abordagem estruturalista da antropologia: uma cultura se estuda tal como é numa determinada época, e não segundo seu desenvolvimento ou sua evolução histórica. O funcionalismo foi decerto uma reação contra o evolucionismo e afirmava o primado da ação recíproca entre os diversos elementos e instituições de dada sociedade, mas o estruturalismo veio enfatizar ainda mais a concepção de sociedade como todo indivisível.
Como método científico, o estruturalismo estuda seu objeto, trate-se de cultura, linguagem, psiquismo humano ou outro qualquer, como um sistema em que os elementos constituintes mantêm entre si relações estruturais. Ao tomar este ou aquele objeto, o estruturalismo se propõe transcender a organização primária dos fatos, observável na pesquisa, para descrever a hierarquia e os nexos existentes entre os elementos de cada nível, para depois chegar a um modelo teórico do objeto. A abordagem estruturalista foi aplicada a várias disciplinas. Destacaram-se Ferdinand de Saussure e Leonard Bloomfield na lingüística; Claude Lévi-Strauss na antropologia; Jean Piaget na psicologia e Louis Althusser na filosofia.
O termo "estrutura", do qual provém o conceito de estruturalismo, designa um conjunto de elementos solidários entre si, ou cujas partes são funções umas das outras. Cada um dos componentes se acha relacionado com os demais e com a totalidade. Daí pode-se dizer que uma estrutura se compõe mais propriamente de membros que de partes, é mais um todo que uma soma. Os membros desse todo se acham entrelaçados de tal forma que não existe independência de uns em relação aos outros, mas antes uma interpenetração. Exemplos de estruturas seriam, pois, os organismos biológicos, as coletividades humanas, as formas do psiquismo, as configurações de objetos em determinado contexto etc.
O estruturalismo foi entendido também como o corpo teórico que marcou o início da decadência das ideologias nas ciências sociais, já que a abordagem estrutural excluiria a praxis (a ação, a prática), que o marxismo, por exemplo, estabelece como critério supremo de verdade. É a estrutura (do latim struere, construir) que explica os processos. Em contraposição, Althusser pretendeu conferir forma estrutural ao marxismo, afirmando que o pensamento é uma "produção", espécie de "prática teórica" exercida não apenas por sujeitos individuais, mas na qual intervêm fatores sociais e históricos.
Em toda estrutura se distinguem três características básicas: (1) sistema ou totalidade; (2) leis de transformação que conservam ou enriquecem o sistema; e (3) auto-regulação, pois as transformações se efetuam sem que na estrutura intervenham elementos exteriores. Uma vez descoberta a estrutura, deve ser possível sua "formalização". Cabe ressaltar que a formalização é uma criação teórica e que a estrutura é anterior ao modelo teórico e independe dele.
Quanto ao caráter de totalidade que a estrutura reveste, todos os estruturalistas concordam em que as leis que afetam os elementos de um sistema não se reduzem a associações cumulativas, mas se formam por composição, isto é, conferem ao todo propriedades de conjunto distintas dos atributos dos elementos. As leis de composição das totalidades estruturadas são estruturantes por natureza e é precisamente essa atividade estruturante que assegura a existência de um sistema de transformações. Um sistema, mesmo do ponto de vista exclusivamente sincrônico (plano temporal concreto, em oposição ao enfoque diacrônico, ou estudo histórico), não é imutável, pois aceita ou rejeita inovações em função das necessidades impostas pelas uniões e oposições existentes no próprio sistema.
Entende-se a auto-regulação das estruturas como sua capacidade de ajustar-se a fim de garantir a conservação. Nesse sentido a estrutura se fecha sobre si mesma, embora possa integrar, como subestrutura, uma estrutura mais ampla. A modificação das fronteiras gerais não dá lugar à abolição das fronteiras já existentes, pois o que se produz é uma confederação e não uma anexação. As leis da subestrutura não sofrem alteração, mas se conservam, de modo que a mudança representa um enriquecimento.
Algumas obras fundamentais do estruturalismo são Cours de linguistique générale (1916; Curso de lingüística geral), de Saussure; Language (1933; A linguagem), de Leonard Bloomfield; A Textbook of Psychology (1910; Manual de psicologia), de Edward Bradford Titchener; e as obras de Lévi-Strauss Les Structures élémentaires de la parenté (1967; As estruturas elementares do parentesco), Race et histoire (1952; Raça e história), La Pensée sauvage (1962; O pensamento selvagem) e Anthropologie structurale (1973; Antropologia estrutural).

segunda-feira, novembro 16, 2009

ESTOICISMO


Roma foi um centro do Estoicismo

Doutrina panteísta e materialista que nasceu no fim do século IV a.C. com Zenão de Citium e se desenvolveu até o fim do século III a.C. — Distingue-se: 1.° o antigo estoicismo (Zenão, Cleantes, Crisipo), que foi principalmente uma teoria do universo e uma lógica: definia a sabedoria como o "saber das questões divinas e humanas" (Sextus Empiricus), isto é, como o conhecimento das leis que regem todo o universo — e não somente a conduta dos homens; 2.° o médio estoicismo (Panétio, Posidônio); 3.° o novo estoicismo (Epicteto, Séneca, Marco Aurélio), que é sobretudo uma moral no esforço e na intenção do bem; a sabedoria define-se então como a "posse de uma arte proveitosa: a posse da virtude". Vê-se que a evolução do estoicismo se fêz no sentido da passagem de uma "física" (identificada à teologia) de caráter panteísta a uma "moral" de caráter rigorista. — A lógica do antigo estoicismo apresenta-se como a primeira teoria profunda da linguagem humana; a teoria dos "incorpóreos" (sobre esse tema, pode-se ler a Lógica estoica de O. Hamelin; sobre o estoicismo em seu conjunto, os capítulos que a ele concernem na História da filosofia de Ueberwegs.) (V. histórico.) [Larousse]

Designa-se assim a doutrina de uma escola filosófica greco-romana, que vai do ano 300 a. C. até ao ano 200 d. C, tendo tomado o nome do pórtico (stoa) de Atenas, que era utilizado como local de reunião. E costume distinguir o estoicismo antigo (Zenão, Oleantes, Crisipo), o estoicismo médio (Panécio, Posidonio) e o estoicismo tardio ou posterior (Sêneca, Epicteto, Marco Aurélio). O estoicismo congrega doutrinas de antigos filósofos com ideias de Platão e de Aristóteles, é portador de um novo ethos e de um novo modo de pensar, que repercute especialmente na ética. Das três partes da filosofia: lógica, física, ética, cabe a esta última o posto mais elevado. O ideal é o sábio, que vive conforme à natureza, domina os afetos, suporta serenamente o sofrimento e se contenta com a virtude como fonte única de felicidade (eudaimonia). Nas questões de ordem metafísica, o estoicismo professa geralmente, e de maneira preponderante, um panteísmo materialista. Deus é uma espécie de alma do mundo; contém em si os germes ou forças seminais (logoi spermatikoi) de toda evolução, de sorte que a totalidade do acontecer aparece regido por um plano e como efeito da providência; contudo, a liberdade é excluída (fatalismo). O estoicismo é não tanto uma filosofia de grandes linhas sistemáticas, quanto uma corrente, uma orientação de intenso matiz vital; pretende, como sucedâneo da religião, proporcionar ao homem educação e amparo para a alma. Condiciona também a consideração pormenorizada das virtudes particulares e a atitude pedagogicamente exortativa adotada pelos estoicos em seus escritos. São características as doutrinas da igualdade dos homens e um certo cosmopolitismo. Os Padres da Igreja cristã aceitaram muitas ideias e distinções estóicas, mas eliminando delas o orgulho moralista da virtude e a apreciação demasiado negativa dos afetos. — Schuster [Brugger]

Em antagonismo à escola epicúrea, surge a Estóica, que toma dos cínicos o conceito da filosofia como exercício e estudo da virtude. Zeno de Cítio, Cleanto de Asos, Crisipo de Soles, Sêneca, Marco Aurélio, Epitecto são nomes dos mais famosos estoicos.

Aceitavam um materialismo dinâmico, mas o princípio ativo era identificado com o fogo de Heráclito e com o éter de Aristóteles, que invade todas as coisas com sua tensão e seu calor, que é, como Heráclito pensava, o Logos (v. logos), a razão universal, a razão de todas as coisas. Por isso são também panteístas. Aceitavam uma inexorável necessidade (fatalidade) e, consequentemente, uma lei de finalidade (providência), porque tudo é orientado racionalmente. Assim Deus é a ordem universal, fatal e providencial. O mal é necessário para que exista o bem: a injustiça, necessária para que exista justiça. Não há verdade sem a falsidade. A liberdade individual é um momento da fatalidade universal. O fim ideal do indivíduo é a criação e a conservação de uma harmonia de vida, que é conformidade com sua natureza interior, enquanto é conformidade com a natureza universal. O domínio da razão, que é o Logos universal, deve impedir as perturbações dos impulsos irracionais, as paixões. É a virtude o ideal do sábio, e ela consiste na extirpação das paixões (apatia) e na imperturbabilidade (ataraxia).

Todas as paixões são vícios porque são erros e enfermidades da alma. Assim repelem os impulsos comumente condenados, como a ira, o temor, a avidez, a cupidez, etc, como também os julgados louváveis, como a piedade, as aflições por calamidade pública, a compaixão, etc.

Não se pode dizer que os estoicos fossem egoístas, no mau sentido, por se desinteressarem com as calamidades públicas. Mas a sua visão do mundo, leva-os a compreender que um mal particular podia ser um bem no conjunto universal. Além disso, pregavam eles a indiferença, para com o sofrimento próprio, uma atitude tal, que o termo estoicismo alcançou, no vocabulário popular, um sentido de serena superioridade ante o sofrimento. O cristianismo, que sobrevém depois, não é estoico, pois a caridade passa a ser a grande virtude. No entanto, com Zeno, no seu cosmopolitismo, que prega um vínculo universal entre os homens, encontramos um ponto de aproximação com o cristianismo. [MFS]

domingo, novembro 15, 2009

Empirismo



EMPIRISMO

Empirismo, ou filosofia da experiência, é a corrente filosófica que considera a experiência como fonte única do conhecimento (fonte do conhecimento). O empirismo ignora que a experiência só é possível na pressuposição de condições não experimentáveis. O empirismo propõe-se, de modo especial, explicar os conceitos e juízos universais mediante a pura experiência. Sem dúvida, "todo nosso conhecimento começa com a experiência" e por ela é, de qualquer maneira, condicionado. Mas não se pode admitir que nossos conhecimentos se restrinjam ao domínio da mera experiência. Nem sequer pode ser derivado da experiência o princípio: "todo conhecimento proveniente da experiência é verdadeiro"; menos ainda o axioma básico do empirismo: "só a experiência garante o conhecimento verdadeiro". — O empirismo deve renunciar igualmente a explicar os conceitos universais. As representações sensoriais comuns ou esquemas não bastam para explicá-los, porque tais esquemas não podem como predicados, ser atribuídos de modo idêntico a muitos objetos reais. O conceito lógico de "homem" é rigorosamente uno, ao passo que seu esquema sensorial admite diversas formas. Por isso, tampouco esses esquemas podem desempenhar o papel de sujeito ou predicado em juízos universais. Por sua vez, precisam eles de uma norma, para serem produzidos e conhecidos como esquemas, e essa norma é o conceito lógico. Nem basta apelar para representações acessórios sensoriais subconscientes, porque o conceito universal é representação consciente e clara. Não se nega que o conceito possivelmente se revista de esquema sensível e seja acompanhado de representações acessórias sensíveis; mas este processo pressupõe o conceito lógico. — O empirismo confunde, outrossim, a relação intelectiva sujeito-predicado com a associação cega. O empirismo tenta fundamentar a validade dos juízos universais a partir da indução. Mas a indução tem pressuposições (a lei de uniformidade da natureza) que não podem ser fundamentadas pela mera experiência. — A rejeição da metafísica como conhecimento que transcende a experiência desconhece que a própria experiência é condicionada por princípios transempíricos, de sorte que em todo verdadeiro conhecimento ela é implicitamente ultrapassada.

Precursor do empirismo moderno foi o nominalismo da baixa e alta Idade Média. Bacon de Vendam (+ 1626) formula, em termos claros e inequívocos, no "Novum Organum" os princípios do empirismo e arvora a indução em método único da ciência. Esta doutrina foi ulteriormente ampliada na direção do sensismo de J. Locke (+ 1709) e do positivismo de Condillac (+ 1780). Também o neopositivismo é um rebento do empirismo. Kant admite, sem dúvida, que a experiência só é possível graças a funções não experienciais do espírito, mas, por não haver analisado profundamente estas funções, circunscreve a validade objetiva delas, de acordo com os princípios do empirismo. — VIDE racionalismo. — Santeler. [Brugger]

Com este nome designa-se uma doutrina filosófica e em particular gnoseológica segundo a qual o conhecimento se funda na experiência. Costuma contrapor-se o empirismo ao racionalismo, para o qual o conhecimento se funda, pelo menos em grande parte na razão. Contrapõe-se também ao inatismo, segundo o qual o espírito, a alma, e, em geral, o chamado “sujeito cognoscente” possui ideias inatas, isto é, anteriores a toda a aquisição de dados. Para os empiristas, o sujeito cognoscente é semelhante a uma tábua rasa onde se inscrevem as impressões procedentes do mundo exterior. Pode-se dizer que, em geral, há três tipos de empirismo: o psicológico, o gnoseológico e o metafísico. Para o primeiro, o conhecimento tem integralmente a sua origem na experiência; o segundo defende que a validade de todo o conhecimento radica na experiência; o último afirma que a própria realidade é empírica, isto é, que não há outra realidade para além da que é acessível à experiência e em particular à experiência sensível.

Neste artigo restringir-se-á o termo empirismo ao chamado empirismo moderno e especialmente ao empirismo inglês, representado por Francis Bacon, Hobbes, Locke, Berkeley e Hume. Costuma-se opor este empirismo ao racionalismo continental (especialmente o de Descartes, Malebranche, Espinosa, Leibniz), embora sem grande pretexto, pois há autores empiristas, como Locke, que revelam uma forte componente racionalista.

Comum a todos os empiristas ingleses é a concepção do espírito ou sujeito cognoscente como um receptáculo no qual ingressam os dados do mundo exterior transmitidos pelos sentidos mediante a percepção. Os dados que ingressam nesse receptáculo são as chamadas (por Locke e Berkeley) ideias, que Hume denomina sensações. Essas ideias ou sensações constituem a base de todo o conhecimento. Mas o conhecimento não se reduz a elas. com efeito, se o conhecimento fosse assim consistiria numa série desconexa de dados meramente presentes. É mister que as ideias ou sensações se acumulem, por assim dizer, no espírito, de onde acorrem, ou melhor, de onde “são chamadas” para se ligarem a outras percepções. Graças a isso, torna-se possível executar operações como recordar, pensar, etc. - a menos que sejam estas operações as que tornam possível o recorrer às ideias ou sensações depositadas -; em todo o caso, é necessário que esta segunda fase do processo cognitivo para que o conhecimento seja propriamente esse e não mera presença de percepções continuamente mutáveis. A relação entre a primeira e a segunda fase do processo cognitivo é paralela à relação entre as ideias ou sensações primitivas e as ideias ou sensações ditas “complexas”, sem as quais não poderia haver noções de objetos compostos de várias ideias elementares, isto é, de objetos (que se supõem ser substâncias) com qualidades. Com efeito, a formação dos objetos compostos não segue a ordem na qual foram obrigatoriamente dadas as impressões primárias, mas outras ordens diferentes que, além disso, sempre têm de ser confirmadas mediante o recurso à experiência primeira. Acima destes processos encontra-se o processo chamado reflexão, mediante o qual se torna possível o reconhecimento de conceitos e, em geral, de algo universal. Isto não significa que o universal seja aceite como propriamente real. Os autores que são, ao mesmo tempo, empiristas e nominalistas manifestam especialmente uma grande desconfiança para com tudo o que aparece como abstrato e, relativamente a este tema, estabelecem-se grandes diferenças entre os autores empiristas. Também diferem os empirismos no que respeita à diferença dos processos de inferência e àquilo a que Hume chamou relações de ideias. A admissão de uma diferença básica entre os fatos e as ideias, como propõe Hume (para o qual as ideias, no sentido de relações de ideias, são meras possibilidades de combinação) não é o único tipo de empirismo existente, mas é um dos formulados com maior precisão e que exerceu maior influência. Grande parte das tendências empiristas contemporâneas, inclusive o positivismo lógico, seguiram, neste aspecto, o empirismo de Hume.

Nos empiristas atrás mencionados, é caraterístico aquilo a que chamamos “empirismo psicológico”, a que dão um alcance gnoseológico. Contra isto se rebelou Kant. No princípio da Crítica da Razão Pura, Kant declara que, embora todo o conhecimento comece com a experiência, nem todo o conhecimento procede de a experiência. Isto quer dizer que a origem do conhecimento reside (psicologicamente) na experiência, mas a validade do conhecimento reside (gnoseologicamente) fora da experiência. Assim, nem todo o conhecimento é, para Kant, a posteriori; constitui-se por meio do a priori. Para os empiristas ingleses, especialmente para Hume, o a posteriori é sintético e o a priori é analítico. Para Kant existe a possibilidade de juízos sintéticos a priori (na matemática e na física). [Ferrater]

conjunto dos processos empíricos. (É nessa acepção que se fala dos "tateamentos do empirismo".) — A palavra designa também uma doutrina (desenvolvida por Locke e Hume) segundo a qual todo o conhecimento deriva da experiência. O empirismo opõe-se ao "racionalismo" e à teoria das ideias inatas (Descartes). [Larousse]

Fonte: filoinfo

sábado, novembro 14, 2009

EGOISMO

 

Egoísmo, (do lat. ego, eu), atitude intelectual do que limita tudo a si. — No plano metafísico, o egoísmo é a doutrina que considera a existência dos outros como ilusória, ou, ao menos, duvidosa; essa acepção metafísica encontra-se atualmente abandonada. Em psicologia, o egoísmo designa a tendência (legítima, de resto) do indivíduo a defender-se, a manter-se, a desenvolver-se. Nesse sentido, é somente um aspecto do instinto de conservação. Até aqui, o termo não é absolutamente pejorativo. Só pode ser classificado dessa maneira quando designa, no sentido estreito, o interesse excessivo do indivíduo em si próprio, indo até ao desprezo dos interesses alheios. Toma então o caráter de uma anomalia, de um fator de insocia-bilidade, mesmo quando se alarga em "egoísmo a dois" (o casal) ou em "egoísmo a três" (o casal e o filho). No plano moral, o egoísmo opõe-se ao altruísmo, isto é, à compreensão do outro, à generosidade; denomina-se então egocentrismo, individualismo, e opõe-se a qualquer espécie de "engajamento" em geral. [Larousse]



Ego (pal. lat. que signif. eu), expressão latina que designa, em psicanálise, o "eu" como  equilíbrio entre o "super-ego" (a consciência social) e o "id" (as tendências físicas, os desejos individuais). Se o "super-ego" e o "id" são abstrações, o ego corresponde à pessoa real, a uma forma particular de relação do sujeito com o mundo e com os outros homens. [Larousse]


Egocentrismo. Tendência a fazer de si o centro do universo. — Piaget e Claparède estabeleceram que o egocentrismo é um estágio normal na evolução do caráter da criança de quatro a seis anos, intermediário entre o puro egoísmo orgânico da primeira idade e a atitude mais social da criança evoluída. Assim, o termo não é, em si, pejorativo, salvo se aplicar-se a um adulto, em quem o egocentrismo deveria estar, em princípio, ultrapassado. [Larousse]

Fonte: filoinfo

sexta-feira, novembro 13, 2009

Dualismo




É toda teoria que se refere a dois princípios: o dualismo da alma e do corpo, a propósito da natureza humana, da vontade e do entendimento, no que concerne às funções do espírito (Descartes). — A oposição mais frequente é a do homem e do mundo, do espírito e da matéria; toda doutrina humanista é dualista, sob esse aspecto, na medida em que afirma a liberdade do homem e a impossibilidade de reduzi-lo às leis da natureza (determinismo absoluto, panteísmo), de absorver o indivíduo nos mecanismos sociais, numa administração (totalitarismo), por exemplo. [Contr.: monismo.] [Larousse]
O dualismo em geral, em oposição ao monismo, mantém os contrastes essenciais existentes na realidade entre o ser contingente e o Se absoluto (mundo e Deus) e, dentro da esfera do contingente, entre conhecer e ser, entre matéria e espírito, respectivamente entre matéria e forma vital unida ao material, entre ser e ação, entre substância e acidente, etc. — Toda pluralidade se deve reduzir certamente à unidade em seu último fundamento, mas não deve ser suprimida em sua própria esfera. — Ao invés, dualismo designa, com frequência, o outro extremo do monismo: a dualidade pura, irredutível. Assim, o dualismo metafísico estreme explica a limitação e o mal no mundo, pela aceitação de dois princípios: um princípio "potencial", a par de Deus, e coeterno com Ele, que põe obstáculos e limites à Sua ação configuradora do universo (a matéria eterna de Platão), ou então um ser mau independente frente ao princípio bom (maniqueísmo). Também o dualismo antropológico, tal como é defendido por Descartes, não toma em conta a unidade de corpo e alma que, superando a dualidade, existe no homem (corpo e alma [Relação entre]). — WlLLWOLL. [Brugger]


No século XVIII, opôs-se o dualismo ao monismo. Eram dualistas os que afirmavam a existência de duas substâncias, a material e a espiritual, ao contrário dos monistas, que não admitiam senão uma. Com os vocábulos dualista e monista, caraterizavam-se posições muito fundamentais no problema da relação alma-corpo, de tão amplas ressonâncias na filosofia moderna, a partir de Descartes. Assim, Descartes carateriza-se como francamente dualista, enquanto Espinosa representa o caso mais extremo do monismo. Só a posterior generalização do termo fez que dualismo significasse, em geral, qualquer contraposição de duas tendências irredutíveis entre si. Além disso, entende-se o dualismo de diversas maneiras, consoante o campo a que se aplique, falando-se de dualismo psicológico (união da alma com o corpo, da liberdade e do determinismo), dualismo moral (o bem e e a alma, a natureza e a graça), de dualismo gnoseológico (sujeito e objeto), de dualismo religioso, etc. Contudo, chama-se também dualista a qualquer doutrina metafísica que supõe a existência de dois princípios ou realidades irredutíveis entre si e não subordináveis, que servem para a explicação do universo. Na verdade, esta última doutrina é a que se considera dualista por excelência. Os múltiplos dualismos que podem manifestar-se nas teorias filosóficas - como o chamado dualismo aristotélico da forma e da matéria, o dualismo kantiano da necessidade e liberdade, de fenômeno e númeno - são-no na medida em que se interpretam os termos opostos de um modo absolutamente realista e até se lhes dá um certo cariz valorativo. Só deste ponto de vista podemos dizer que o dualismo se opõe ao monismo, que não apregoa a subordinação de umas realidades a outras, mas que tende constantemente à identificação dos opostos, mediante a subsunção dos mesmos numa ordem ou princípio superior. [Ferrater]

Fonte: filoinfo

quarta-feira, novembro 11, 2009

DOGMATISMO

O QUE É DOGMATISMO


É a tendência a afirmar sem discussão. — Em filosofia, designa toda doutrina que parte de uma certeza prévia (nesse sentido, o dogmatismo se opõe ao "criticismo": a filosofia crítica começa por duvidar de tudo — como Descartes nas Meditações; como Kant, cuja Crítica da razão pura deixa em suspenso todos os problemas metafísicos, como a imortalidade da alma, a origem do mundo e a existência de Deus), ou mesmo, toda doutrina que alcança uma certeza (a filosofia de Spinoza é um dogmatismo na medida em que conclui num sistema do conhecimento verdadeiro). A "filosofia dogmática" designa mais particularmente a filosofia da Idade Média, baseada na autoridade do dogma religioso (doutrina fixa que a Igreja prega em nome de Deus e da Revelação). O dogmatismo opõe-se teoricamente ao ceticismo; na vida prática, ao empirismo: o político dogmático é aquele que orienta sua ação em função de uma teoria, não levando em consideração as realidades históricas do mundo atual. A atitude subjacente ao dogmatismo é a intolerância ou o fanatismo. [Larousse]
Como orientação científica, significa (1) originariamente o contrário do ceticismo. — Kant entende por dogmatismo (2) o racionalismo e, além disso, toda filosofia em que a metafísica procura avançar sem crítica do conhecimento. — Na neo-escolástica dá-se também o nome de dogmatismo (3) à chamada teoria das verdades fundamentais. De modo geral, pode caracterizar-se como dogmatismo (4) toda concepção que pretenda subtrair suas afirmações e pressuposições a uma crítica justificativa. — O dogmatismo (5), enquanto atitude pessoal, tende a dizer em tudo a palavra definitiva e a não tolerar qualquer contradição. Dogmático significa: (1) "sem crítica'', ou (2) apodítico, estritamente demonstrativo, necessário por força de princípios puramente racionais", ou (3) "pertencente à disciplina teológica da dogmática, isto é, ao dogma enquanto doutrina de fé da Igreja". Santeler. [Brugger]

O sentido em que se usa em filosofia, o termo dogmatismo é diferente daquele em que se usa em religião. Nesta última, o dogmatismo é o conjunto dos dogmas, os quais são considerados (pelo menos em muitas Igrejas cristãs, e em particular no catolicismo) como proposições pertencentes à palavra de Deus e propostas pela Igreja.

Filosoficamente, em contrapartida, o vocábulo dogmatismo significou primitivamente oposição. Tratava-se de uma oposição filosófica, isto é, de algo que se referia aos princípios. Por isso, o termo dogmático significou “relativo a uma doutrina” ou “fundado em princípios”. Ora, os filósofos que insistiam demasiado nos princípios acabavam por não prestar atenção aos fatos ou aos argumentos que pudessem pôr em dúvida esses princípios. Esses filósofos não consagravam a sua atividade à observação ou ao exame, mas à afirmação. Foram por isso chamados “filósofos dogmáticos”, ao contrário dos filósofos examinadores ou cépticos.

O dogmatismo entende-se principalmente em três sentidos:
1) como posição própria do realismo ingênuo, que admite não só a possibilidade de conhecer as coisas no seu ser verdadeiro (ou em si) mas também a efetividade deste conhecimento no trato diário e direto com as coisas. 2) como a confiança absoluta num determinado órgão de conhecimento (ou suposto conhecimento), principalmente da razão. 3) como a completa submissão, sem exame pessoal, a determinados princípios ou à autoridade que os impõe ou revela. Em geral, é uma atitude adoptada no problema da possibilidade do conhecimento e, portanto, compreende as duas primeiras acepções. Contudo, a ausência do exame crítico revela - se também em certas formas de cepticismo e por isso se diz que certos cépticos são, a seu modo, dogmáticos. O dogmatismo absoluto e o realismo ingênuo não existem propriamente na filosofia, que começa sempre pela pergunta acerca do ser verdadeiro e, portanto, procura este ser mediante um exame crítico da aparência. Isso acontece não só no chamado dogmatismo dos primeiros pensadores gregos, mas também no dogmatismo racionalista do século XVIII, que desemboca numa grande confiança na razão, mas depois de a ter submetido a exame. Como posição gnoseológica, o dogmatismo opõe-se ao criticismo mais que ao cepticismo. Esta oposição entre o dogmatismo e o criticismo foi sublinhada especialmente por Kant, que, ao proclamar o seu despertar do “sono dogmático” por obra da crítica de Hume, opõe a crítica da razão pura ao dogmatismo em metafísica. “dogmatismo é, pois, o procedimento dogmático da razão pura sem uma prévia crítica do seu próprio poder” (CRÍTICA DA RAZÃO PURA).

A oposição entre o dogmatismo e o cepticismo adquire sentido em Comte, quando considera estas duas atitudes não só como posições perante o problema do conhecimento, mas também como formas últimas da vida humana. A vida humana pode existir, com efeito, em estado dogmático ou em estado céptico. Este último não é mais que uma passagem de um dogmatismo anterior a um novo dogmatismo. [Ferrater]

A palavra dogma vem do verbo grego dokein, que significa parecer. Antigamente a empregavam os gregos para significar qualquer opinião aceita, e também como ordem, decreto. Chamavam de dogmática a toda filosofia que afirmasse certas teses como verdadeiras. Finalmente, tomou, sobretudo entre nós, a acepção de doutrina fixada, incontestada. Por isso é sempre a palavra dogmatismo oposta a cepticismo, que vem do grego skepsis, que significa análise, e do verbo skeptomai, examinar atentivamente.

É verdade que hoje se emprega o termo dogmatismo para significar toda a posição doutrinária que afirma, sem justificar suficientemente as suas opiniões, impõe-nas como verdadeiras e indiscutíveis, fundadas em autoridade. O dogmatismo é, neste sentido, uma forma viciosa do absolutismo, quer no terreno das ideias, quer no das relações jurídicas.

É preciso, por isso, ter o máximo cuidado no emprego de um termo que se presta a equívocos.
Na gnoseologia, considera-se dogmatismo (que chamaremos de dogmatismo gnoseológico), aquele que afirma, quanto à possibilidade do conhecimento, que o contacto entre o sujeito e o objeto implica um conhecimento exato e verdadeiro, sobre o qual não põe dúvidas.

O dogmatismo gnoseológico, portanto, não duvida do conhecimento.
Percepções, conhecimentos racionais são ou podem ser verdadeiros para o dogmático. Também, para estes, os valores existem, pura e simplesmente. A consciência é virtualizada por ele como o é a consciência cognoscente.

Subdivide-se o dogmatismo, em:
teórico — quando se refere ao conhecimento teórico;
ético — quando se refere ao conhecimento dos valores mentais;
axiológico — quando se refere aos valores em geral;
religioso — quando se refere ao conhecimento dos valores religiosos;
científico — quando se refere ao conhecimento dos factos cientificamente analisados.

Considera-se como dogmatismo ingênuo o do homem comum, que não põe em dúvida o valor dos seus conhecimentos.

As reflexões gnoseológicas, surgidas entre os jônicos, na Grécia, prepararam o terreno para as posteriores análises dos eleáticos e para a crítica dos sofistas e da skepsis, dos cépticos gregos em geral, já no período da decadência helênica.

O cepticismo é assim a posição diametralmente oposta ao dogmatismo.
Em sua atitude prática, os cépticos não afirmavam que o sujeito pudesse apreender o objeto. Ao contrário: que tal captação não se dava completa, razão pela qual propunham que nos abstivéssemos de qualquer juízo (suspensão do juízo - epoche), evitando julgar, já que nos faltava um meio seguro de conhecimento.

O dogmatismo virtualizava o sujeito, para atualizar o objeto; o céptico atualiza o sujeito para virtualizar o objeto. Se o primeiro ainda afirma a captação; o segundo nega-a pela condicionalidade relativa do sujeito, o que é recusado pelos primeiros, que afirmam que o ser do conhecido não é um ser cogniscível, enquanto os segundos afirmam a relacionalidade do acr do conhecimento, porque todo conhecimento é apenas condicionado pelo sujeito, portanto falível e limitado.
Consequentemente, por sabedoria, deveria o homem suspender o julgamento (epoche, que significa suspensão). [MFS]

Do grego, dogma, que significa opinião, decisão, decreto, aresto; dogmatikos, que se funda em princípios, ou é relativo a uma doutrina. Os antigos céticos chamavam dogmáticos os filósofos que, sem olhar e examinar cuidadosamente, pois tal é o sentido do verbo grego sképtomai, limitavam-se a afirmar suas teses ou opiniões. Na obra intitulada Contra os dogmáticos (lógicos, físicos e moralistas), considerada por Leon Robin "um dos mais úteis monumentos da erudição antiga", Sexto Empírico classifica as doutrinas ou escolas filosóficas em dogmáticas (aristotélicos, epicuristas, estoicos), que supõem ter encontrado a verdade, dos "acadêmicos", que sustentam que a verdade não pode ser conhecida e daqueles que se propõem examinar ou investigar, os céticos.

Na primeira fase da história do pensamento cristão, com a filosofia chamada patrística, o dogmatismo deixa de ser filosófico e assume um aspecto nitidamente religioso. Na luta contra as heresias e o paganismo, os padres da Igreja recorrem às armas intelectuais de que dispõem, a filosofia grega e especialmente o neoplatonismo, a fim de formular e defender os dogmas que, por serem dogmas, admitem enunciação racional, mas excluem discussão quanto à sua validade ou verdade. O dogma comporta um trabalho de exegese intelectual, desde que seu conteúdo, mesmo irracional, permaneça intocado, pois o critério da verdade não é a razão, mas a crença. A expressão mais concisa desse dogmatismo nós a encontramos na famosa sentença atribuída a Tertuliano credo quia absurdum, que também se acha em Santo Agostinho.

Na Idade Média, o dogmatismo é religioso e teológico, traduzindo-se na censura ao pensamento, na condenação das teses julgadas heterodoxas, na proibição de ensinar, na inclusão das obras dissidentes no index librorum prohibitorum, na condenação à morte dos herejes queimados em praça pública para escarmento e edificação dos fiéis. A "santa inquisição" significa, historicamente, o dogmatismo levado às suas últimas consequências, até o extermínio, por aqueles que julgam ter o monopólio da verdade, e detém circunstancialmente o monopólio do poder, daqueles que representam o inconformismo, o espírito crítico, a liberdade de pensamento. Giordano Bruno, cujas ideias estavam em consonância com as necessidades e aspirações de sua época, é uma das vítimas mais ilustres do dogmatismo e da intolerância religiosa.

Modernamente, a palavra assume outras conotações, especialmente na obra de Kant. Segundo o autor das Criticas, David Hume o teria despertado do "sono dogmático". Em que consistia esse sono? Na adoção, pela razão pura, de "um método dogmático, sem submeter seu próprio poder a uma crítica prévia". A filosofia dogmática, para Kant, é a metafísica tradicional que, "elevando-se acima das lições da experiência, apóia-se em simples conceitos", recaindo no "velho dogmatismo carcomido". A filosofia dogmática, no entanto, é o pressuposto da filosofia crítica cujo objeto, ou conteúdo, é precisamente a crítica dos dogmas metafísicos, fruto de uma razão que se exerce à revelia da experiência e não reflete sobre si mesma.

Nos "anexos" à Ciência da Lógica, inclusa na Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Hegel, lembrando que os antigos céticos consideravam dogmática qualquer filosofia que sustentasse teses determinadas, observa que "nesse sentido amplo a filosofia propriamente especulativa passaria também por dogmática aos olhos dos céticos". Distinguindo dois sentidos do termo, o lato do restrito, observa que, neste último, o dogmatismo consiste "em manter com firmeza as determinações unilaterais do entendimento, com exclusão das determinações opostas. É, de modo geral, o "ou isto ou aquilo", que leva a dizer que o mundo ou é finito ou infinito, mas apenas um dos dois. O verdadeiro, enquanto totalidade, contém nele reunidas essas de-determinações que, para o dogmatismo, valem, separadas, como algo firme e verdadeiro". Para Hegel, a própria filosofia de Kant, crítica em relação ao dogmatismo da metafísica tradicional, ainda ou também é uma filosofia dogmática, porque não ultrapassa o plano do "entendimento" para alcançar o plano superior da "razão", no qual as categorias do entendimento, unilaterais e abstratas, são assumidas e superadas na dialética da totalização ou da síntese.

Contemporaneamente, o dogmatismo tem assumido caráter principalmente ideológico e político. Convertendo-se em ideologia, a filosofia política torna-se doutrina oficial do Estado, ortodoxia a ser defendida pela censura e pelo aparelho policial e militar. Embora não inclua dogmas religiosos, cuja aceitação depende da fé, mas apenas teses de conteúdo econômico, social e político, discutíveis como quaisquer teses, a dialética da institucionalização ideológica conduz à intolerância e à violência, suscitando um novo tipo de dogmatismo que, em suas consequências, pouco difere do medieval.

O processo da "intelligentzia", nos países em que se implantaram regimes ditatoriais e fascistas, revela que o dogmatismo não é apenas a característica de filosofias ingênuas ou pré-críticas, a intolerância ou a intransigência no plano da teoria, das ideias, mas, exasperando-se em fanatismo, a vontade prática de eliminar os adversários, quer dizer, aqueles que divergem da ideologia dominante ou a contestam.

Imposição unilateral e arbitrária de tese relativa que se pretende absoluta, recusa ao diálogo e à comunicação das consciências, o dogmatismo, quer seja religioso, filosófico ou político, é, em sua essência, irracional e antidialético, pois consiste na pretensão de impedir o exercício da negação, ou da negatividade (liberdade) do espírito, imobilizando o que é contradição e processo, e por isso história, em uni momento apenas de seu desenvolvimento. [Corbisier]

Fonte: filoinfo
Marcilio Reginaldo