domingo, julho 11, 2010

Política & Direito


A palavra política denomina arte ou ciência da organização, direção e administração de nações ou Estados; aplicação desta arte aos negócios internos da nação (política interna) ou aos negócios externos (política externa);. Nos regimes democráticos,a ciência política é a atividade dos cidadãos que se ocupam dos assuntos públicos com seu voto ou com sua militância.

A palavra tem origem nos tempos em que os gregos estavam organizados em cidades-estado chamadas "polis", nome do qual se derivaram palavras como "politiké" (política em geral) e "politikós" (dos cidadãos, pertencente aos cidadãos), que estenderam-se ao latim "politicus" e chegaram às línguas européias modernas através do francês "politique" que, em 1265 já era definida nesse idioma como "ciência do governo dos Estados".

O termo política é derivado do grego antigo πολιτεία (politeía), que indicava todos os procedimentos relativos à pólis, ou cidade-Estado. Por extensão, poderia significar tanto cidade-Estado quanto sociedade, comunidade, coletividade e outras definições referentes à vida urbana.

O livro de Platão traduzido como "A República" é, no original, intitulado "Πολιτεία" (Politeía) .

Acepções básicas

•No sentido comum, vago e às vezes um tanto impreciso, política, como substantivo ou adjetivo, compreende arte de guiar ou influenciar o modo de governo pela organização de um partido político, pela influência da opinião pública, pela aliciação de eleitores;
•Na conceituação erudita, política "consiste nos meios adequados à obtenção de qualquer vantagem", segundo Hobbes ou "o conjunto dos meios que permitem alcançar os efeitos desejados", para Russel ou "a arte de conquistar, manter e exercer o poder, o governo", que é a noção dada por Nicolau Maquiavel, em O Príncipe;
•Política pode ser ainda a orientação ou a atitude de um governo em relação a certos assuntos e problemas de interesse público: política financeira, política educacional, política social, política do café;
•Numa conceituação moderna, política é a ciência moral normativa do governo da sociedade civil.
•Outros a definem como conhecimento ou estudo “das relações de regularidade e concordância dos fatos com os motivos que inspiram as lutas em torno do poder do Estado e entre os Estados”.

A política é objecto de estudo da ciência política e da ciência social.

Significado clássico e moderno

O termo política, que se expandiu graças à influência de Aristóteles, para aquele filósofo categorizava funções e divisão do Estado e as várias formas de Governo, com a significação mais comum de arte ou ciência do Governo; desde a origem ocorreu uma transposição de significado das coisas qualificadas como político, para a forma de saber mais ou menos organizado sobre esse mesmo conjunto de coisas. O termo política foi usado, a seguir, para designar principalmente as obras dedicadas ao estudo daquela esfera de atividades humanas que se refere de algum modo às coisas do Estado: Política methodice digesta, exemplo célebre, é obra com que Johannes Althusius (1603) expôs uma das teorias da consociatio publica (o Estado no sentido moderno da palavra), abrangedo em seu seio várias formas de consociationes menores. Na época moderna, o termo perdeu seu significado original, substituído pouco a pouco por outras expressões como ciência do Estado, doutrina do Estado, ciência política, filosofia política, passando a ser comumente usado para indicar a atividade ou conjunto de atividades que, de alguma maneira, têm como termo de referência a pólis, ou seja, o Estado. [2]

Política e poder

A política, como forma de atividade ou de práxis humana, está estreitamente ligada ao de poder. O poder político é o poder do homem sobre outro homem, descartados outros exercícios de poder, sobre a natureza ou os animais, por exemplo. Poder que tem sido tradicionalmente definido como "consistente nos meios adequados à obtenção de qualquer vantagem" (Hobbes) ou, como "conjunto dos meios que permitem alcançar os efeitos desejados" (Russell).

Formas e origens do poder

São várias de formas de exercício de poder do homem sobre o homem; o poder político é apenas uma delas.

Concepção aristotélica

Para Aristóteles a distinção é baseada no interesse de quem se exerce o poder: o paterno se exerce pelo interesse dos filhos; o despótico, pelo interesse do senhor; o político, pelo interesse de quem governa e de quem é governado, tratando-se das formas corretas de Governo, nas demais o característico é que o poder seja exercido em benefício dos governantes.

Concepção jusnaturalista

O critério que acabou por prevalecer nos tratados do direito natural foi da legitimação, encontrado no cap. XV do Segundo tratado sobre o governo de Locke: o fundamento do poder paterno é a natureza, do poder despótico o castigo por um delito cometido, do poder civil o consenso. Estas justificação do poder correspondem às três fórmulas clássicas do fundamento da obrigação: ex natura, ex delicio, ex contractu.

Carácter específico do poder

Os critérios arisatotélico ou jusnaturalisata não permitem distinguir o caráter específico do poder político. Os escritores políticos não cessaram nunca de identificar governos paternalistas ou despóticos, ou então governos cujarelação com os governados se assemelhava ora à relação entre pai e filhos, ora à entre senhor e escravos, e que não deixam, por isso, de ser governos tanto quanto os que agem pelo bem público e se fundam no consenso.

Tipos de poder

o elemento específico do poder político pode ser obtido das várias formas de poder, baseadas nos meios de que se serve o sujeito ativo da relação para determinar o comportamento do sujeito passivo. Assim, podemos distinguir três grandes classes de um conceito amplíssimo do poder.

Poder económico

É o que se vale da posse de certos bens, necessários ou considerados como tais, numa situação de necessidade, para controlar aqueles que não os possuem, consistente na realização de um certo tipo de trabalho. A posse dos meios de produção é enorme fonte de poder para aqueles que os têm em relação àqueles que os não têm: o poder do chefe de uma empresa deriva da possibilidade que a posse ou disponibilidade dos meios de produção lhe oferece de poder vender a força de trabalho a troco de um salário. Quem possui abundância de bens é capaz de determinar o comportamento de quem não os tem pela promessa e concessão de vantagens.

Poder ideológico

O poder ideológico se baseia na influência que as idéias da pessoa investida de autoridade exerce sobre a conduta dos demais: deste tipo de condicionamento nasce a importância social daqueles que sabem, quer os sacerdotes das sociedades arcaicas, quer os intelectuais ou cientistas das sociedades evoluídas. É por eles, pelos valores que difundem ou pelos conhecimentos que comunicam, que ocorre a de socialização necessária à coesão e integração do grupo.

Poder ideológico: o poder dos intelectuais e cientistas emerge na modernidade quando as ciências ganham um estatuto preponderante na vida política da sociedade, influenciando enormemente o comportamento das pessoas. A ciência se propõe a responder pelos mistérios da vida, o que na Idade Média era "mistério da fé".

Poder político

O poder político se baseia na posse dos instrumentos com os quais se exerce a força física: é o poder coator no sentido mais estrito da palavra.

A possibilidade de recorrer à força distingue o poder político das outras formas de poder. Isso não significa que ele seja exercido pelo uso da força; a possibilidade do uso é condição necessária, mas não suficiente para a existência do poder político. A característica mais notável é que o poder político detém a exclusividade do uso da força em relação à totalidade dos grupos sob sua influência.

Hobbes e o direito natural

O fundamento teoria moderna do Estado, segundo Hobbes, é a passagem do Estado de natureza ao Estado civil, ou da anarchía à archia, do Estado apolítico ao Estado político. Essa transição é representada pela renúncia de cada um ao direito de usar cada um a própria força, existente no estado de natureza e que torna todos os indivíduos iguais entre si, para delegar o direito do exercício da a uma única pessoa, um único corpo, que será o único autorizado a usar a força contra eles.

Teorias marxista e weberiana

A hipótese jusnaturalista abstrata adquire profundidade histórica na teoria do Estado de Marx e de Engels, segundo a qual a sociedade é dividida em classes antagônicas e as instituições políticas têm a função primordial de permitir à classe dominante manter seu domínio. Mas este objetivo só pode ser alcançado, na estrutura do antagonismo de classes, pelo controle eficaz do monopólio da força; é por isso que cada Estado é, e não pode deixar de ser, uma ditadura.

Já é clássica a definição de Max Weber: "Por Estado se há de entender uma empresa institucional de caráter político onde o aparelho administrativo leva avante, em certa medida e com êxito, a pretensão do monopólio da legítima coerção física, com vistas ao cumprimento das leis".

O fim da política

O que a política pretende alcançar pela acção dos políticos, em cada situação, são as prioridades do grupo (ou classe, ou segmento nele dominante): nas convulsões sociais, será a unidade do Estado; em tempos de estabilidade interna e externa, será o bem-estar, a prosperidade; em tempos de opressão, a liberdade, direitos civis e políticos; em tempos de dependência, a independência nacional. A política não tem fins constantes ou um fim que compreenda a todos ou possa ser considerado verdadeiro: "os fins da Política são tantos quantas são as metas que um grupo organizado se propõe, de acordo com os tempos e circunstâncias". A política se liga ao meio e não sobre o fim, corresponde à opinião rorrente dos teóricos do Estado, que excluem o fim dos seus elementos constitutivos. Para Max Weber: "Não é possível definir um grupo político, nem tampouco o Estado, indicando o alvo da sua ação de grupo. Não há nenhum escopo que os grupos políticos não se hajam alguma vez proposto(...) Só se pode, portanto, definir o caráter político de um grupo social pelo meio(...) que não lhe é certamente exclusivo, mas é, em todo o caso, específico e indispensável à sua essência: o uso da força". Portanto, o fim essencial da política é a aquisição do monopólio da força.

Política relacional

A esfera da política é a da relação amigo-inimigo. Nesse sentido, a origem e de aplicação da política é o antagonismo nas relações sociais e sua função se liga à actividade de associar e defender os amigos e de desagregar e combater os inimigos. Há conflitos entre os homens e entre os grupos sociais, entre esses conflitos há alguns notáveis pela intensidade são os conflitos políticos. As relações entre os grupos instigadas por esses conflitos, agregando os grupos internamente ou os confrontando entre si, são as relações políticas. O conflito mais amplo, entre grupos consubstanciados em Estados, é a guerra - nesse sentido tida como a continuação da política por outros meios, no dizer de Clausewitz.

Política, moral e ética

A relação entre política e moral, como contraste entre ética individual e ética de grupo, explica a secular disputa existente sobre a razão de Estado. Por "razão de Estado" se compreende o conjunto de princípios e máximas segundo os quais acções que injustificadas, quando praticadas pelo indivíduo, são justificadas e exaltadas se praticadas pelo príncipe ou quem quer que exerça o poder em nome do Estado. O Estado tem razões que o indivíduo não tem, isso evidencia a diferença entre Política e moral, e essa diferença se refere aos diversos critérios segundo os quais se consideram boas ou más as acções desses dois campos.

"A afirmação de que a política é a razão do Estado encontra perfeita correspondência na afirmação de que a moral é a razão do indivíduo."

A imoralidade da política baseia-se numa moral diferente da do dever pelo dever: é a moral pela qual se deve fazer tudo o que está ao alcance para realizar o fim proposto. Sabe-se, nesse caso, que o julgamento tem base no sucesso.

enciclopedia.com.pt

domingo, maio 23, 2010

Ficha Limpa: Um pequeno passo para a moralização do processo político eleitoral.

Recibi por  email este artigo do Fabio Valentin, que apos lido está postado para que meus leitores percebam
a riqueza dos comentario que o colega expoe sobre o tema e como a filosofia pode ajudar a compreender o emaranhado polilitico do Brasil.

Ficha Limpa: Um pequeno passo para a moralização do processo político eleitoral.

Agora está confirmado. O senado aprovou o projeto ficha limpa, falta somente o presidente Lula sancionar. Passando essa fase só restará o poder judiciário decidir se será validado já para o pleito que ocorrerá em outubro próximo.

Um bom projeto, mas que precisará ser melhorado ao longo do tempo. Sem dúvidas foi um grande passo para nossa classe política, visto como eles se esquivavam de aprovar projetos que trarão benefícios, exclusivamente, para a sociedade. Porém, este é apenas um pequeno passo rumo à moralização do processo eleitoral.

Como vimos no desenrolar desse processo, tudo não passa de uma ação embrionária do pleno desenvolvimento do individuo como ator realmente presente, nos processos formadores da democracia, conforme nos mostrou Cristovam Buarque (PDT/DF), em seu pronunciamento no senado, esse é um momento histórico de construção de novas formas de exercício da cidadania.

Desta forma a “Ágora virtual”, onde os cidadãos - internautas exercem seu direito de isegoria (do grego: isos = igual, e agos = orador, significa a liberdade de expressar opiniões nas assembléias.) através da redes sociais como twitters, orkut e mesmo os blogs. Direito este que na atualidade é deixado de lado devido a barreiras inúmeras, como o distanciamento físico e rotinas diárias de cada um, mas que através da mobilização existente no ambiente virtual, os anseios do povo podem chegar até àqueles que na teoria são seus representantes.

Os princípios da democracia são a isegoria; já citados a isotimia e a isonomia. Isto é, Isotimia (do grego: isos = igualdade, e timos = riqueza, indicava o direito de todos ao acesso às funções públicas, abolindo-se os títulos e privilégios hereditários, fundados, quase sempre, na riqueza.).

E de acordo com a nossa constituição, esse principio é respeitado, todavia o que vemos na prática é que o poder financeiro é fator decisivo na hora de ter acesso a um cargo público eletivo. Fala-se em números milionários que são necessários ao financiamento de uma campanha de governador de Estado. Como uma forma de inibir o “caixa dois” medidas que permitem o financiamento público e privado de campanhas que são postos na pauta de discussões, mas será que elas são eficazes na defesa desse principio democrático? Penso que não.

Entretanto como nos mostrou ontem em seu pronunciamento Geraldo Mesquita Júnior (PMDB - AC), outras medidas devem ser tomadas.

O senador do Acre defendeu a criação do projeto “conta limpa”. Segundo ele, seria permitida a doação de qualquer valor por parte de pessoas físicas ou jurídicas, isso seria uma forma de patriotismo, aliás, o dinheiro, não seria doado diretamente para o candidato, e sim para uma conta do tribunal eleitoral própria, a fim de que se fizesse o financiamento do processo eleitoral, além do que seria rateado entre os partidos pelo mesmo sistema do fundo partidário.

Parecem-nos que esta é uma boa idéia; mesmo porque, atualmente, os candidatos recebem o dinheiro para sua campanha favorecendo o surgimento de tráfico de influencias e corrupção.

Desse modo, o candidato que está bem preparado financeiramente, larga com vantagens em relação ao candidato que está bem preparado em suas idéias e municiado com projetos e planos de governo.

Já em relação à Isonomia (do grego: iso = igual e nomos = regras) era, como visto, a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de grau, classe ou poder econômico.

Esse é um direito já conquistado, no âmbito do processo eleitoral. Visto que o sufrágio universal é garantia de direito de todos de votar. O que ocorre é que a necessidade momentânea e imediata faz com que muitos eleitores troquem o seu voto por uma camisa, boné ou mesmo uma cesta básica ou saco de cimento. Não percebem aqueles que seus atos estão fazendo com que corruptos tenham acesso a cargos eletivos públicos.

E a moralidade política eleitoral, sem dúvida nenhuma, passa por mudanças no processo eleitoral. Mas passa, antes de tudo, por maior rigor do poder judiciário na hora de julgar as pilhas de processos já existentes em todo o país de envolvidos em crimes contra o patrimônio publico; efetuados por políticos do mal uso de suas atribuições decorrentes de cargos públicos.

Naturalmente, passará pelos próprios partidos quando começarem a proibir que os políticos “fichas sujas” façam parte de seu grupo de afiliados. E, certamente, passará pela sociedade que deverá não somente parar de votar naquele tipo de político e, sim, bani-los de uma vez por todas da vida pública.

Precisamos como sociedade, perceber que a corrupção começa com os pequenos erros ou desvios de conduta. Quando um pai dá um “agrado” ao professor para que seu filho passe de ano; quando fingimos que estamos conversando com alguém, e na cara de pau se fura a fila; quando damos de qualquer forma o velho “jeitinho brasileiro” estamos sendo corruptos.

É esse tipo de corrupção socialmente aceita ou mesmo velada que estamos partindo para corrupções mais nocivas. Não se esqueçam que os políticos são partes deste meio social, são frutos desta sociedade e não objetos vindos de outra galáxia. Como Aristóteles afirmou: Não faz mal que alguém não goste de política, o problema é que ele será governado por aqueles que gostam. Mas esse é um assunto para outra conversa...


Fabio Alves Valentim, professor de Filosofia e especialista em Ética e Filosofia Política, pela UERN.

segunda-feira, maio 17, 2010

O benefício da dúvida - Autor: Ferreira Gullar


Fonte: Folha de S. Paulo (edição impressa)

Difícil é lidar com donos da verdade. Não há dúvida de que todos nós nos apoiamos em algumas certezas e temos opinião formada sobre determinados assuntos; é inevitável e necessário. Se somos, como creio que somos, seres culturais, vivemos num mundo que construímos a partir de nossas experiências e conhecimentos. Há aqueles que não chegam a formular claramente para si o que conhecem e sabem, mas há outros que, pelo contrário, têm opiniões formadas sobre tudo ou quase tudo. Até aí nada de mais; o problema é quando o cara se convence de que suas opiniões são as únicas verdadeiras e, portanto, incontestáveis. Se ele se defronta com outro imbuído da mesma certeza, arma-se um barraco.

De qualquer maneira, se se trata de um indivíduo qualquer que se julga dono da verdade, a coisa não vai além de algumas discussões acaloradas, que podem até chegar a ofensas pessoais. O problema se agrava quando o dono da verdade tem lábia, carisma e se considera salvador da pátria. Dependendo das circunstâncias, ele pode empolgar milhões de pessoas e se tornar, vamos dizer, um “führer”.

As pessoas necessitam de verdades e, se surge alguém dizendo as verdades que elas querem ouvir, adotam-no como líder ou profeta e passam a pensar e agir conforme o que ele diga. Hitler foi um exemplo quase inacreditável de um líder carismático que levou uma nação inteira ao estado de hipnose e seus asseclas à prática de crimes estarrecedores.

A loucura torna-se lógica quando a verdade torna-se indiscutível. Foi o que ocorreu também durante a Inquisição: para salvar a alma do desgraçado, os sacerdotes exigiam que ele admitisse estar possuído pelo diabo; se não admitia, era torturado para confessar e, se confessava, era queimado na fogueira, pois só assim sua alma seria salva. Tudo muito lógico. E os inquisidores, donos da verdade, não duvidavam um só momento de que agiam conforme a vontade de Deus e faziam o bem ao torturar e matar.

Foi também em nome do bem – desta vez não do bem espiritual, mas do bem social – que os fanáticos seguidores de Pol Pot levaram à morte milhões de seus irmãos. Os comunistas do Khmer Vermelho haviam aprendido marxismo em Paris não sei com que professor que lhes ensinara o caminho para salvar o país: transferir a maior parte da população urbana para o campo. Detentores de tal verdade, ocuparam militarmente as cidades e obrigaram os moradores de determinados bairros a deixarem imediatamente suas casas e rumarem para o interior do país. Quem não obedeceu foi executado e os que obedeceram, ao chegarem ao campo, não tinham casa onde morar nem o que comer e, assim, morreram de inanição. Enquanto isso, Pol Pot e seus seguidores vibravam cheios de certeza revolucionária.

É inconcebível o que os homens podem fazer levados por uma convicção e, das convicções humanas, como se sabe, a mais poderosa é a fé em Deus, fale ele pela boca de Cristo, de Buda ou de Muhammad. Porque vivemos num mundo inventado por nós, vejo Deus como a mais extraordinária de nossas invenções. Sei, porém, que, para os que crêem na sua existência, ele foi quem criou a tudo e a todos, estando fora de discussão tanto a sua existência quanto a sua infinita bondade e sapiência.

A convicção na existência de Deus foi a base sobre a qual se construiu a comunidade humana desde seus primórdios, a inspiração dos sentimentos e valores sem os quais a civilização teria sido inviável. Em todas as religiões, Deus significa amor, justiça, fraternidade, igualdade e salvação. Não obstante, pode o amor a Deus, a fé na sua palavra, como já se viu, nos empurrar para a intolerância e para o ódio.

Não é fácil crer fervorosamente numa religião e, ao mesmo tempo, ser tolerante com as demais. As circunstâncias históricas e sociais podem possibilitar o convívio entre pessoas de crenças diferentes, mas, numa situação como do Oriente Médio hoje, é difícil manter esse equilíbrio. Ali, para grande parte da população, o conflito político e militar ganhou o aspecto de uma guerra religiosa e, assim, para eles, o seu inimigo é também inimigo de seu Deus e a sua luta contra ele, sagrada. Não é justo dizer que todos pensam assim, mas essa visão inabalável pode ser facilmente manipulada com objetivos políticos.

Isso ajuda a entender por que algumas caricaturas – publicadas inicialmente num jornal dinamarquês e republicadas em outros jornais europeus – provocaram a fúria de milhares de muçulmanos que chegaram a pedir a cabeça do caricaturista. Se da parte dos manifestantes houve uma reação exagerada – que não aceita desculpas e toma a irreflexão de alguns jornalistas como a hostilidade de povos e governos europeus contra o islã–, da parte dos jornais e do caricaturista houve certa imprudência, tomada como insulto à crença de milhões de pessoas.

Mas não cansamos de nos espantar com a reação, às vezes sem limites, a que as pessoas são levadas por suas convicções. E isso me faz achar que um pouco de dúvida não faz mal a ninguém. Aos messias e seus seguidores, prefiro os homens tolerantes, para quem as verdades são provisórias, fruto mais do consenso que de certezas inquestionáveis.

sexta-feira, março 05, 2010

O Sonho de Platão


No século IV a.C., em data imprecisa, surgiu em Atenas a primeira concepção de sociedade perfeita que se conhece. Tratou-se do diálogo "A República" (Politéia), escrito por Platão, o mais brilhante e conhecido discípulo de Sócrates. As idéias expostas por ele - o sonho de uma vida harmônica, fraterna, que dominasse para sempre o caos da realidade - servirão, ao longo dos tempos, como a matriz inspiradora de todas utopias aparecidas e da maioria dos movimentos de reforma social que desde então a humanidade conheceu.
Platão e a democracia
"Ora, estabelecemos, e repetimos muitas vezes, se bem te recordas, que cada um deve ocupar-se na cidade de uma única tarefa, aquela para a qual é melhor dotado por natureza"
Platão, "A República". Livro IV, 432 d - 433 b.
O filósofo Platão (428-347 a.C.) foi um dos maiores críticos da democracia. do seu tempo. Pelo menos daquela que era praticada em Atenas e que ele conheceu de perto. Nascido em uma família ilustre que se orgulhava de descender do grande reformador Sólon, Platão, como ele mesmo explicou na conhecida VII Carta, terminou desviando-se da carreira política devido ao regime dos "Trinta Tiranos", derrocado em 403 a.C. Um dos seus parentes próximos havia exercido elevadas funções durante aquela tirania, que, apesar da sua curta duração, foi extremamente violenta, perseguindo os adversários de maneira incomum para os costumes gregos. Fato que lançou suspeitas sobre toda a sua família, inclusive atingindo o jovem Platão, quando a democracia foi restaurada. Mas o fator decisivo da aversão dele à democracia deveu-se ao julgamento e condenação a que foi submetido no areópago o seu velho mestre, o sábio Sócrates. Que , como é sabido, foi injustamente acusado de impiedade e de ter corrompido a juventude ateniense, educando-a na suspeição dos deuses da cidade. Caso célebre acontecido no ano de 399 a.C. e que culminou com Sócrates sendo obrigado a beber a cicuta (veneno oficial com que se executavam os condenados em Atenas). Esse crime jurídico que vitimou o amável ancião fez com que ele passasse a se dedicar, entre outras coisas, à busca de um regime político ideal, que evitasse para sempre a possibilidade de reproduzir-se uma injustiça como a que vitimou o velho sábio.
Os diálogos, obra dramática
Platão, como grande estilista da língua grega que era, dotado de extraordinário censo dramático, apresentou um método original de expor suas reflexões: o do diálogo. O que levou a que alguns estudiosos afirmar que tal método de exposição era literariamente tão grandioso como as tragédias de Ésquilo ou de Sófocles. Neles, nos diálogos platônicos, o personagem central é Sócrates, com quem Platão privou até o seu momento final. A principal obra política dele foi "A República" (Politéia), que compôs provavelmente entre 380 e 370 a.C., quando tinha mais de 50 anos de idade, portanto, obra da sua maturidade. Um pouco antes do seu falecimento Platão voltou novamente a especular sobre a sociedade ideal por meio de outro grande diálogo: As Leis.
O cenário onde o reunião acontece, tal como ocorre em tantos outros diálogos de Platão, é a casa de um homem rico, o velho Céfalo, que põe o seu salão à disposição dos intelectuais, políticos e artistas para discutirem filosofia e assuntos gerais. Estão presentes Sócrates, os filhos do dono da casa, Polemarco, Lísias e Eutiderno, além de Timeu, Crítias e Trasímaco. Tais tertúlias eram muito comuns, fazendo o gosto das classes cultas de Atenas, sendo uma espécie de antecipação dos salões que fizeram a fama da sociedade aristocrática francesa do século XVIII e XIX.

Trancrito

terça-feira, janeiro 26, 2010

O factor Deus. Por José Saramago - Nobel da literatura




Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos mas até a mais obtusa das imaginações poderá “ver” cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes.

Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro.

Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras.

Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova Iorque. Dois aviões comerciais norte-americanos, sequestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo. Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.

As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara, as vítimas são mostradas no próprio instante da tortura, da agónica expectativa da morte ignóbil. Em Nova Iorque tudo pareceu irreal a princípio, episódio repetido sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mas limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos trilhados, de merda. O horror agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefacção para nos saltar à garganta. O horror disse pela primeira vez “aqui estou” quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, numa chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdómen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda de um milhão de mortos, daquele Vietname cozido a napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atómicas que arrasaram e calcinaram Hiroxima e Nagasaqui, daqueles crematórios nazis a vomitar cinzas, daqueles camiões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse.

De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta dos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas sem excepção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como os outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que isto seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel.

Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os taliban, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente os textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conluio pactuado entre Religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos, o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gémeas de Nova Iorque e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela acção dos homens, cobriram e teimam em cobrir de torpor e sangue as páginas da História.

Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o “factor Deus”, esse está presente na vida como se efectivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o “factor Deus” o que se exibe nas nota de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos e não a outra...) a benção divina. E foi o “factor Deus” em que o deus islâmico se transformou que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o “factor Deus”, esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem, acabou por fazer do homem uma besta.

Ao leitor crente (de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiram, não peço que passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento se não puder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do “factor Deus”. Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.

José Saramago - Nobel da literatura  (Transcrição do jornal “Público” de 2001/09/18