sexta-feira, outubro 30, 2009

A MORTE SEGUNDO A ESCOLA FILOSOFICA FRANKFURT



Os agentes de Stálin entraram no quarto e não precisaram falar nada. O filósofo sabia que era o seu fim. Havia imaginado durante todo o dia que, de fato, poderia ter de vir a colocar fim à sua vida. Mas, não se pode dar tanta razão assim ao que parece ser um destino. Não haveria uma fada madrinha dos intelectuais? Alguém para salvá-los, em um último instante? Não seria interessante apostar uma ficha, ainda que de pouco valor, nessa idéia? Foi isso que o fez não morrer no começo daquela noite, por sua própria decisão, e então morrer na madrugada, pela decisão dos homens de Stálin. Esses homens cuidaram bem para que, na manhã seguinte, ninguém pudesse duvidar que Walter Benjamin havia cometido suicídio.
Foi assim que Benjamin morreu? Dizem que não.
Os homens da Gestapo estavam para pegar Benjamin. Sua idéia era sair da França não ocupada em direção à Espanha, e seguir para a América. Mas, em Port Bou, ele se deu conta de que não conseguiria ir mais adiante. Imaginando que iria ser mandado de volta e, então, cairia de vez nas mãos de Gestapo, Benjamin deu fim à própria vida. Nem por um momento pensou dar chance à fada madrinha dos intelectuais.
Foi assim que Benjamin morreu? Dizem que sim.
A partir daí, as perguntas que ficaram eram todas de ordem prática, em favor de algum ganho intelectual ou político. Onde estaria a valise que Benjamin carregava? Será mesmo que ele carregava alguma valise? Havia ou não manuscritos nela? Onde estariam? Caso houvesse, o que ele tinha escrito, o colocava mais como vítima de estalinistas do que de nazistas? Sempre quando o assunto é a morte de Benjamim, esse mistério todo chama a atenção. Adorno, Horkheimer e toda a Escola de Frankfurt nunca fizeram um gesto sequer noutra direção. Afinal, o que fariam? Quando um intelectual morre, o correto não é buscar os manuscritos, as cartas e, afinal, tudo aquilo que poderia ser tido como “o inédito”?
Alguém arriscaria escrever sobre Walter Benjamin com perguntas de outro tipo? Por exemplo, não seria interessante aplicar à morte de um frankfurtiano algo mais frankfurtiano?
Quando cheguei na garagem do hospital, vi o corpo do meu pai não ser retirado da ambulância para a maca, mas de ser posto num caixão. No trajeto da estrada, ele teve um segundo enfarto. Tentaram reavivá-lo com choque. Ele pareceu reagir, mas não conseguiu. Minha primeira pergunta para minha mãe, que havia estado com ele o tempo todo, foi a seguinte: “mãe, quando ele saiu de casa, já tendo tido o primeiro enfarto, ele sentiu que ia morrer ou não? Ele ficou apavorado, ele teve medo?” Só isso me interessava. Pois o que eu queria ouvir era simples. Queria que ela dissesse que não, que ele não se apavorou, não por coragem, e sim porque não sentiu a morte chegar, em nenhum momento. Pouco me interessava todo o resto. A única curiosidade que eu tinha, naquele momento, era a de saber se eu podia ou não ficar descansado, pois meu pai não teria visto a morte cara a cara. Ele não esperou por ela, não a viu, e quando ela veio, ele estava de costas. Só isso eu queria. Só isso podia me dar alguma coisa a mais naquele momento, e mesmo hoje, anos depois.
É uma pena que nenhum dos membros da Escola de Frankfurt, que eu saiba, tenha deixado de lidar com a morte segundo uma prática que eles mesmos chamariam de reificada. De que vale uma pasta com o maior texto do mundo? Só vale alguma coisa, depois que a vida se vai, quando se quer acreditar que o texto é maior que a vida. É claro que todos nós, intelectuais, ainda mais na condição de filósofos, podemos querer acreditar que a melhor homenagem que se pode prestar a um amigo morto é buscar seus escritos, publicá-los, manter seu pensamento vivo e respeitado. Todavia, não é justamente isto, um gesto que mostra que estamos reificados? Afinal, o texto, por mais brilhante que possa ser, por mais amor que aquele que o produziu tivesse nele, continua sendo ... um texto. Na maior parte das vezes, até pouco tempo, um pacote de papel. Uma arvore morta transformada no receptáculo dos pensamentos de um morto.
Pode-se, é claro, dizer o seguinte: mas não era isso que o amigo faria, caso a situação fosse inversa? Caso fosse você a vítima, o amigo que ficou no mundo não teria de se preocupar única e exclusivamente com os textos? Proteger o pensamento do morto, suas idéias, não seria este o melhor tributo? Todavia, o problema aqui é outro, caso se possa imaginar que deveríamos ficar no espírito verdadeiro da Escola de Frankfurt. O problema é o seguinte: será que temos de fazer do “tributo” algo maior que a vida ou, para ser mais exato, a perda dela?
O que quero dizer é que a única forma frankfurtiana de lidar com a morte de Benjamin é aquela maneira com que lidei – sem qualquer frankfurtianismo, é claro – com a morte do meu pai. Qual a pergunta mais importante sobre Benjamin? Só uma: será que Benjamin se apavorou? Suicídio ou não, tanto faz. O que quero perguntar é: ele se apavorou? Não quero a resposta para essa pergunta. Ao contrário da que fiz para minha mãe, esta pergunta não tem resposta. Nunca saberemos. Mas, colocá-la, é tudo que podemos fazer para sermos frankfurtianos diante de um frankfurtiano. Procurar papéis, pastas ou mesmo quem o matou é não entender que o que se foi é aquilo que não poderia ter ido, a vida. A vida de uma pessoa chamada Walter Benjamin que, afinal, não atravessou os Pirineus para turismo, viajou para fugir. Isto sim é o doloroso. Ou seja, Benjamin viajou para viver! E não viveu. A vida se foi. E o terrível nisso tudo é o que não pode ser abrandado, não deve ser abrandado, que é a pergunta: qual foi o seu desespero na hora da morte? Temos de apertar as mãos com força, massageando-as uma na outra e dizer: “ah, tomara que não, tomara que ele não tenha visto a morte cara a cara”.
Quando a morte pode ser tão facilmente tomada como ela é, ou seja, irreversível, para então, rapidamente, todos já poderem cuidar dos pertences de intelectuais do morto, há aí uma reificação. Há aí algo estranho. Algo do “mundo administrado” já dominando a todos. Os frankfurtianos não fizeram o luto de Benjamim. Nada mais esquisito do que o não luto.
Richard Rorty morreu em 2007. Ele tinha um tumor no cérebro. Era inoperável. Então, escreveu para mim agradecendo o que eu havia feito pelo pragmatismo no Brasil e os trabalhos em conjunto e coisas assim. Era uma despedida. Escreveu a todos os amigos. Creio que a cada um ele contou da doença de uma maneira um pouco diferente. Imagino isso porque Habermas acabou publicando o modo como foi informado da doença pelo próprio Dick. Além disso, Rorty fez um último texto, praticamente incitado por parentes, e nele confessou que, ao saber que não iria durar muito, o consolo que encontrou foi na poesia, como os que, enfim, o encontram na religião. Até chegou a comentar que ele deveria ter lido mais poesia. Mas, nós sabemos, por outros escritos, que ele não podia fazer isso, tendo sido filho de James Rorty, um célebre poeta. Demorei um pouco para falar da morte de Rorty e deste texto. Os familiares de Rorty, só agora, em 2009, refazem o site dele na Stanford University, e então colocam novas fotos, mais ou menos biográficas. Bem, o que eu quis dizer é que todos nós, de certa forma, fizemos luto por Rorty.
O luto é um tema que não pode fugir de quem vive a filosofia da Escola de Frankfurt. Do mesmo modo que notar as pequenas coisas, o que há de vivo e o que, enfim, é o superior ao valor, que é a vida, é algo bem frankfurtiano. Creio que agimos frankfurtianamente com Rorty. Simplesmente porque, com Rorty, agimos como tínhamos de agir. Ou melhor, agimos como uma filosofia pragmatista nos ensina: não se esquecer da morte como morte mesmo, de tudo que há de prático nela, de tudo que há de experiência naquele momento – e não deixar de passar pela experiência, não reificá-la. Não fazer missa ou venda de livros ou publicação de obituários teóricos e tudo o mais antes da hora. Respeitar a prática e viver, em grande medida, sob a praxe – fizemos isso, segundo o pragmatismo. Acabamos, então, agindo frankfurtianamente com Rorty.
Compreender que diante da morte de alguém o que há de se fazer é chorar, deveria ser uma lição filosófica. Outra lição filosófica, inclusive frankfurtiana, deveria ser esta: pensar os últimos momentos de alguém, poder saber que não foram de desespero, é a única preocupação que temos de ter. O resto é resto. O resto, por mais grandioso que possa aparecer depois, como produto cultural, não deixará de virar ... mercadoria.

© 2009 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo.

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